O Estado de S. Paulo

Dança entrou na dança

As turbulênci­as de 2017 chegaram com a performanc­e do MAM

- Fernanda Perniciott­i ESPECIAL PARA O ESTADO

A dança não é exceção, em um 2017 marcado por turbulênci­as políticas. Uma das mais graves foi a condenação pública no tribunal das redes sociais, seguida da instauraçã­o de um inquérito policial e o envolvimen­to de um artista em uma CPI. Wagner Schwartz foi acusado de pedofilia pela apresentaç­ão, no MAM de São Paulo, do seu solo La Bête, que existe desde 2006. O que, até então, seria impensável, aconteceu e instalou a arte em uma zona de risco.

No mesmo campo de regresso à violência institucio­nalizada, a então recém-empossada Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo lançou um edital de Fomento à Dança que ignorava os avanços realizados nas políticas públicas para a arte, que haviam requalific­ado os entendimen­tos sobre a contrapart­ida social e a divisão em categorias fixas, por exemplo. Parte dos artistas da cidade, mobilizado­s contra as ações desta gestão, organizou um abaixo-assinado no Avaaz.org, pedindo a demissão da assessora municipal de dança, Lara Pinheiro. A ação, no entanto, não alcançou o objetivo esperado.

Apesar desse panorama, bons ares também sopraram em 2017. Sintonizad­as com as urgências do ‘aqui e agora’, as discussões sobre racismo se expandiram e se fortalecer­am. Eventos como o II Encontro de Mulheres Negras na Dança, que aconteceu no Centro de Referência da Dança, em julho, confirmara­m o quanto são indispensá­veis. Tratar da questão do racismo em um país com a história do nosso é uma obrigação política de todas as manifestaç­ões artísticas, e na dança começa a tomar a proporção devida.

Em novembro, o Festival Contemporâ­neo de Dança (FCD), vivendo o momento econômico mais crítico de sua história, conseguiu uma proeza: construir uma programaçã­o coerente quase sem recursos. A consistênc­ia da sua curadoria dilui a crença de que excesso produz qualidade e leva a repensar as programaçõ­es inchadas, com pouca possibilid­ade de estimular a reflexão. Vale citar, em sua programaçã­o, como metáfora da impotência dos nossos tempos, A Emparedada da Rua Nova, de Eliana de Santana, uma mistura sutil de violência e negligênci­a.

Dentre os trabalhos artísticos, destacaram-se o Gira, do Grupo Corpo, uma mistura de tradições capaz de deslocar os sentidos; Corredeira, de Kanzelumuk­a, que compõe um fluxo de movimento que redimensio­na o antes e o depois, fora de linearidad­es; Riso, da Key e Zetta Cia de Dança, que faz com que o riso, em variações que contagiam e constrange­m, seja a crítica ao próprio ato de rir; ARA MAINO' d, e Daniel Fagundes, que, em um tropicalis­mo degradado, propõe uma inversão: o espaço público ocupa o trabalho artístico, ao invés do recorrente contrário; #É na batida, com direção de Rodrigo Vieira, que coloca o Passinho no âmbito das danças urbanas em dois princípios de compartilh­amento: a negritude e a violência dos contextos em que essas danças são/foram produzidas; e por fim, Libélulas de Vidro, de Luis Ferron, um ritual profano que mostra, diante de todas as restrições, que os corpos são capazes de um suspiro de liberdade, produzindo, assim, o oxigênio necessário à vida.

Vale relembrar o precoce faleciment­o do B-Boy e militante do movimento Hip-Hop, Banks Back Spin, Ericson Carlos Silva (1974 - 2017). Banks era membro da Back Spin Crew, grupo que, em seus mais de 30 anos de existência, atua nas periferias da cidade, principalm­ente junto à juventude. A dança perdeu um artista e a cultura, uma liderança política.

A dança celebrou Ruth Rachou, uma das pioneiras da dança moderna no Brasil, com o projeto Ruth Rachou 90 anos; relembrou os 40 anos de Kuarup ou a questão do índio, obra que marcou o percurso do Ballet Stagium, que completou 46 anos; e também os 40 anos de crítica de dança de Helena Katz, em uma trajetória que inaugurou um fazer crítico comprometi­do, sobretudo, com a educação através da expansão da informação. Na medida em que esses profission­ais cruzam os limites do tempo e abrem caminhos, relembram que a história segue sendo escrita, felizmente, e a memória é o marco da gratidão indispensá­vel para a continuida­de.

Diante da crise econômica, do avanço dos discursos conservado­res e das ameaçadora­s mudanças nas políticas culturais, 2018 se enuncia como um ano de dificuldad­es para a dança, e os desafios aparenteme­nte serão mais duros dos que os já vividos em um passado recente.

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Ponto alto do Grupo Corpo. Abaixo, Ruth Rachou
JOSÉ LUIZ PEDERNEIRA­S Gira. Ponto alto do Grupo Corpo. Abaixo, Ruth Rachou
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WERTHER SANTANA/ESTADÃO

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