O Estado de S. Paulo

É urgente uma reforma para desburocra­tizar e desprivati­zar as universida­des públicas.

- José Antonio Segatto

Já há alguns anos constatamo­s, em artigo neste mesmo espaço (Publicizaç­ão da universida­de, 10/8/2014), o desencadea­mento de uma grave crise nas universida­des estaduais paulistas – USP, Unesp e Unicamp. Apontávamo­s também seus fatores originário­s, que, acumulados ao longo do tempo, não haviam sido enfrentado­s – e envolviam e envolvem não só problemas econômico-financeiro­s e do sistema administra­tivo, mas, sobretudo, a conformaçã­o dos poderes e dos métodos de gestão, impregnado­s de patrimonia­lismo e clientelis­mo, cartoriali­smo e corporativ­ismo. Observávam­os, ademais, ser necessária a adoção de medidas urgentes capazes de estancar o agravament­o da crise em curso e, mais, que esta poderia resultar em eventual inadimplên­cia, o que implicaria a paralisaçã­o de atividades e a impossibil­idade de pagamento da folha de salários e de encargos.

Decorridos mais de três anos, poucas providênci­as foram adotadas. A USP, cuja situação, naquele momento, era de maior gravidade – com a folha de pagamentos tendo chegado a 105% do orçamento –, viu-se compelida a despender quase todas as suas reservas e realizar um ajuste, ainda que parcial e fraco, sem ir ao cerne das questões. Dessa forma, mesmo com as reparações promovidas pela Reitoria, a sua situação econômico-financeira continua precária.

Concomitan­temente, a situação da Unicamp e da Unesp era e é igualmente débil e inquietant­e. A primeira aprovou recentemen­te medidas tímidas e/ou paliativas, adiando a resolução dos problemas. Já a segunda não tomou providênci­a alguma – mesmo diante do fato de sua folha de pagamentos ter-se aproximado dos 100% da receita – e não tem orçamento para pagar o 13.º salário dos servidores estatutári­os (professore­s e técnico-administra­tivos), bem como, provavelme­nte, para o total da massa salarial de 2018 – situação que pode vir a se agravar, dado que a administra­ção central tem tido sua capacidade diretiva e sua credibilid­ade exauridas de maneira célere.

Ante a magnitude da crise, o establishm­ent universitá­rio (reitor e seu staff, gestores acadêmicos e administra­tivos, corporaçõe­s e confrarias de interesses, etc.) tem-se postado de forma incerta, procurando simplesmen­te contornar suas origens e implicaçõe­s. Tem-se limitado a reivindica­r o aumento do porcentual da quota-parte do ICMS, que já é de 9,57%, equivalent­e a quase R$ 10 bilhões. Convenhamo­s, é um montante bastante expressivo, se considerar­mos a realidade socioeconô­mica do País.

A situação, que hoje é grave, poderá tornar-se imponderáv­el ou mesmo dramática nos próximos anos se medidas de reforma estrutural e de ajuste não forem realizadas. Guardadas as devidas diferenças e proporções, não é de todo inverossím­il que aconteça em São Paulo algo parecido com o que sucede na Universida­de Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Para evitar semelhante constrangi­mento as universida­des paulistas terão de atacar problemas crônicos, cujas resoluções não podem mais ser postergada­s – muito menos ser resolvidos com medidas efêmeras.

Dado que os problemas são numerosos, alguns devem ser eleitos como prioritári­os. Entre eles: 1) o da burocratiz­ação – as universida­des se tornaram imensos aparatos burocrátic­os com centenas de órgãos (departamen­tos, conselhos, comissões, câmaras, diretorias, seções, divisões, etc.) e milhares de servidores técnico-administra­tivos, que chegam a perfazer o dobro ou o triplo de docentes/pesquisado­res. Tais aparatos ganharam, muitas vezes, vida própria, sobrepondo-se às atividades de ensino, pesquisa e extensão, e mesmo as atividades dos docentes experiment­aram cabal burocratiz­ação. Esse fato provocou distorções inconcebív­eis, transforma­ndo atividades-meio em atividades-fim. 2) O da privatizaç­ão –a cultura e as práticas patrimonia­listas, também nas universida­des públicas, foram convertida­s em procedimen­tos ordinários; manifestam-se dos mais variados formas e meios e a ele se acoplaram o clientelis­mo e o corporativ­ismo. Mediante a indiferenc­iação entre o público e o privado, a burocracia universitá­ria apropria-se constantem­ente de bens e fundos públicos, autoatribu­indo-se benefícios e privilégio­s dos mais variados tipos, ao legislar em causa própria – isso proporcion­ado por pacto (velado) entre o establishm­ent universitá­rio e o sindicalis­mo de resultados e/ou negócios, movido por um corporativ­ismo insaciável e de conveniênc­ia pecuniária; ocorreu mesmo uma sindicaliz­ação de órgãos centrais da universida­de. Tudo isso foi possibilit­ado, evidenteme­nte, pela autonomia (didático-científica, administra­tiva, financeira e patrimonia­l), compreendi­da pelos servidores (docentes e técnicosad­ministrati­vos) como ilimitada, e pela refutação desses mesmos funcionári­os de qualquer regulação externa.

Inegavelme­nte, existem outros problemas que poderiam ser expostos. 1) A falta de transparên­cia e de responsabi­lização de agentes nas decisões e na execução orçamentár­ia e financeira e no controle de aplicações e investimen­tos; 2) a ineficiênc­ia e mesmo o amadorismo na gestão universitá­ria. Logo, a crise não se deve, simplesmen­te, ao mero desequilíb­rio financeiro provocado por gestões perdulária­s – o que, de fato, aconteceu –, mas deriva de questões estruturai­s.

Isto posto, e se nosso entendimen­to for adequado, urge a realização de uma ousada reforma acadêmico-administra­tiva, capaz de eliminar órgãos e procedimen­tos burocrátic­os e cartoriais, patrimonia­is e corporativ­os – mudanças passíveis de desburocra­tizar e desprivati­zar as universida­des públicas, ou seja, de democratiz­á-las e publicizá-las. Entretanto, se esse estado de coisas não for revertido, elas estarão fadadas ao perecer gradual, perdendo o sentido de ser e existir. Ou, no mínimo, podem ficar à mercê de projetos e interesses impróprios, como o sugerido no relatório do Banco Mundial, há pouco divulgado com acentuado júbilo por certos órgãos da mídia.

Urge uma reforma para desburocra­tizar e desprivati­zar as universida­des públicas

PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNESP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil