O Estado de S. Paulo

Com carteira assinada

- FRANCISCO FERRAZ PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE ‘POLÍTICA PARA POLÍTICOS’

O resultado geral, redução de vagas, foi muito menos negativo que o da fase de recessão.

Agrande dúvida neste momento é como os principais atores políticos vão lidar com a formalidad­e institucio­nal da democracia. Escândalos como o mensalão e o petrolão evidenciar­am a enorme plasticida­de das regras jurídicas para servir como guarda-chuva das mesmas práticas que estão destinadas a evitar. Basta citar o exemplo da lei de licitações, ao abrigo de cuja formalidad­e se construiu um sistema paralelo de corrupção de obras públicas.

O Estado no Brasil está sempre aumentando suas funções e com elas, a normatizaç­ão detalhada, que traz oportunida­des inovadoras de desvios, abusos, crimes e impunidade. Na conhecida expressão italiana, fatta la legge, fatta la trampa, do latim inventa lege inventa fraude.

Por formalidad­e institucio­nal da democracia refiro-me a regras explícitas e princípios jurídicos consagrado­s destinados a proteger as instituiçõ­es da democracia, como o devido processo legal, normas que regulam o processo eleitoral e direitos individuai­s, entre outros.

É o ordenament­o jurídico dessa hierarquia que foi convocado para processar e julgar crimes financeiro­s e delitos criminais numa escala jamais imaginada. São matérias jurídicas de conteúdo político e atores políticos acusados de delitos penais. São questões que dividem a Nação em grandes segmentos sociais e políticos opostos e provocam uma situação de legitimida­de em questão e inseguranç­a generaliza­da.

Nunca antes questões jurídicas ganharam audiência dessa magnitude no Brasil. Os atores políticos envolvidos buscam a proteção de advogados talentosos que se desdobram em interpreta­ções “criativas”, argumentos capciosos, e exploram os interstíci­os existentes entre as normas, esticando ainda mais a tessitura normativa já esgarçada em favor de suas alegações.

O comportame­nto dos principais atores políticos em relação ao formalismo institucio­nal democrátic­o varia, então, em função dos objetivos políticos buscados.

A esquerda, que não valoriza nem acredita na democracia, que chama depreciati­vamente de burguesa, busca substituí-la por uma dinâmica política substantiv­a com práticas de democracia direta, de forma a pavimentar o caminho para um governo de modelo socializan­te.

Apresenta-se como vítima dessa formalidad­e, contestand­o a forma como é praticada. Os vilões são o Ministério Público, a Polícia Federal e os juízes. Não vai ao ponto de contestar abertament­e a validade dessa normativid­ade, já que por ela será julgada. Denuncia os interesses que estariam por trás das decisões de juízes, procurador­es e delegados. A estratégia opõe o eventual sucesso político ao insucesso judicial.

A direita (partidos convencion­ais) encara as formalidad­es como ameaças. Ideologica­mente sempre praticou a retórica da exaltação da democracia e do Estado de Direito. Não podendo, pois, denunciar a institucio­nalidade democrátic­a nem apostar numa vitória na eleição presidenci­al, sua aposta se reduz a esperar por uma negociação que encontre uma saída para a perigosa situação de tantos legislador­es e políticos.

No governo, as acusações e os processos que pesam sobre alguns de seus ministros e ex-ministros não deixam alternativ­a senão a saída negociada, se possível pelo impacto de uma bem-sucedida recuperaçã­o da economia, já que, se forem aplicadas as regras da formalidad­e institucio­nal, sua carreira e até a liberdade pessoal estarão em alto risco.

Já os grupos corporativ­os do setor público continuarã­o a fazer suas greves, apoiando a esquerda na pressão para ter Lula como candidato, ou seja, a saída sem custos políticos: nem negociada, nem dependente de absolvição, nem dependente da recuperaçã­o econômica do País.

O movimento cultural, em sua nova função de ponta de lança das teses de esquerda, deverá manter sua estratégia de atrito e desgaste do governo e da Lava Jato. Seus instrument­os de luta são os eventos provocativ­os, a participaç­ão nas manifestaç­ões públicas, o uso de sua popularida­de em favor das “causas” e o encargo de dar repercussã­o e obter algum respaldo internacio­nal à contestaçã­o.

Sociologic­amente, quem são os protagonis­tas dessa contestaçã­o do formalismo institucio­nal democrátic­o?

As greves no setor privado passam despercebi­das, são resolvidas na esfera privada. As greves políticas são greves do serviço público. Distúrbios são provocados por movimentos atrelados a partidos políticos de esquerda. Ações de protesto são protagoniz­adas por artistas, intelectua­is, professore­s e universitá­rios. Em resumo, a classe média.

Éa classe média “de esquerda” que engrossa os movimentos e manifestaç­ões. Mas a classe média não faz revolução, ela abastece a esquerda com quadros políticos. São aqueles de quem se pode dizer: quem não é de esquerda tem medo de parecer que não é.

São os companheir­os de viagem, segundo a expressão de Stalin. Parceiros de trajeto, não das lutas. Durante sua “fase esquerdist­a” são mais de esquerda que os verdadeiro­s radicais; sentem-se empoderado­s e superiores àqueles que alegam defender, os pobres, os sem “consciênci­a revolucion­ária”.

Entretanto, no projeto revolucion­ário das esquerdas, salvo na fase de destruição da democracia, a classe média em nada ajuda e muito atrapalha. Isso se deve ao fato de que a classe média de esquerda, ao radicaliza­r, se compromete com projetos contrários aos seus interesses. A outra classe média, a da direita,

não tem esse problema. Está comprometi­da com seus próprios interesses e valores, que correspond­em aos da imensa maioria do povo.

Na realidade, as formalidad­es institucio­nais da democracia são indispensá­veis para civilizada­mente dar solução aos conflitos políticos. Não há substituto para elas. Sem elas sairemos da crise para entrar no caos. É fácil exacerbar sentimento­s, provocar ódio, radicaliza­r diferenças, demonizar adversário­s. Difícil é administra­r civilizada­mente as consequênc­ias dos conflitos tornados irreconcil­iáveis.

Sem as formalidad­es institucio­nais da democracia sairemos da crise para entrar no caos

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