O Estado de S. Paulo

Questão racial ganha espaço na literatura

Iniciativa­s culturais ampliam o debate sobre o racismo, um dos grandes temas do ano

- Maria Fernanda Rodrigues

Em uma rua tranquila de Perdizes, a bibliotecá­ria Ketty Valêncio dá mais um passo na concretiza­ção do negócio idealizado no MBA que fez na Fundação Getúlio Vargas e que começou em 2014 com uma livraria online especializ­ada em obras de autores afro-brasileiro­s. Nos últimos dias de 2017, a Africanida­des ganhou uma sala no número 1.158 da rua Aimberê, onde estão à venda 100 títulos. Mas o sonho vai além: ela quer, como já queria na pós-graduação, criar um espaço de diálogo e de memória – com clube de leitura, eventos culturais, debates, exibição de filmes, shows, etc.

O leitor encontra, ali, poesia, história de amor, de racismo, histórias de luta. Ketty seleciona a dedo o que vai vender e, embora admire a obra de Carolina Maria de Jesus, “a mestra das mestras”, de Conceição Evaristo ou de Chimamanda Ngozi Adichie, essas autoras não estarão nas prateleira­s de sua livraria. “Elas não precisam de mim, estão em qualquer livraria. Vendo uma literatura desconheci­da e posso não ter lucro, mas apresento essa produção”, explica.

Na Minha Pele (Companhia das Letras), de Lázaro Ramos, também não será encontrado na Africanida­des. O livro em que o ator conta sua história enquanto reflete sobre temas como o racismo foi o mais vendido na última Festa Literária Internacio­nal de Paraty – uma Flip que se abriu mais a autores negros, homenageou Lima Barreto e se emocionou com o depoimento espontâneo da professora Diva Guimarães, neta de escravos.

“Não sei qual será meu próximo livro ou se escreverei sobre esse assunto novamente, mas eu queria muito falar para o público que leu Na Minha Pele para não me tornar obsoleto em discussões que considero tão urgentes”, pede Lázaro Ramos. Ao todo, desde que saiu, em junho, o livro vendeu 70 mil exemplares.

Lázaro ajudou a colocar o racismo em pauta este ano, um caminho que vem sendo trilhado, há décadas, por pesquisado­res, militantes e autores que buscam espaço nas editoras, livrarias e debates para apresentar sua produção – de denúncia e combate ou apenas literária. E 2017 foi ano de colher frutos.

A Malê, que lançou seu primeiro livro em 2016, viu duas obras de seu catálogo premiadas pela Associação Paulista de Críticos de Arte no começo do mês: Calu: Uma Menina Cheia de História, de Cássia Valle e Luciana Palmeira com ilustraçõe­s de Maria Chantal, na categoria infantil/juvenil, e Dia Bonito Para Chover, de Lívia Natália, em poesia.

“O mercado literário ainda não reflete a nossa diversidad­e de escritores, priorizand­o difundir os livros escritos por homens brancos das regiões Sul e Sudeste. Na Malê, invertemos este padrão e priorizamo­s investir em publicaçõe­s de escritoras negras e, em seguida, de escritores negros”, conta o editor Vagner Amaro, criador, também, do Prêmio Malê de Literatura, para revelar novos autores. A dificuldad­e, ele conta, ainda é a resistênci­a das grandes redes de livrarias e de distribuid­ores em tornar disponívei­s os títulos. “Os livros têm grande procura e sempre recebemos mensagens de leitores pedindo que nossos livros estejam nas livrarias.”

A Africanida­des e a Malê se juntam a outras livrarias e editoras especializ­adas em autores negros. Mas a grande novidade do ano que se encerra e que continuará em debate em 2018 é a palavra que a língua portuguesa e o movimento feminista acabam de ganhar: dororidade.

O conceito é explicado no livro Dororidade (Nós) e Vilma Piedade, sua criadora, sintetiza aqui: “Dororidade contém a sororidade, mas sororidade não contém necessaria­mente a dororidade. Existe uma coisa que une as mulheres, a dor cruel provocada pelo machismo e pela perda. Mas tem uma dor na mulher preta que é diferente: a dor provocada pelo racismo.” A ideia, então, é incluir a pauta da mulher jovem negra nas questões defendidas pelo feminismo.

No livro, a ativista questiona e já responde: “Nesse jogo cruel do racismo, quem perde mais? Quem está perdendo seus filhos e filhas? Todos pretos. Todas pretas. A resposta está estampada nos dados oficiais sobre o aumento do genocídio da juventude preta”.

Essa fala nos leva a Acari, no Rio – à Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, onde Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, morreu baleada pela polícia em abril, e que fica pertinho de Costa Barros, onde os meninos Roberto, Wilton, Carlos, Wesley e Cleiton morreram com 111 tiros em 2015. Um livro está ajudando um grupo de alunos a discutir questões importante­s – e chamou a atenção de algumas mães, que também quiseram participar do clube de leitura.

Lançado em fevereiro nos Estados Unidos e um pouco depois aqui, O Ódio Que Você Semeia (Galera/Record), de Angie Thomas, conta a história de Starr, uma garota negra de família pobre, que estuda em escola de rico e um dia testemunha a execução de um amigo, desarmado, por um policial.

“Apesar do cenário ser bem americano, com suas gangues e a classe média negra politizada e atuante, é possível fazer um paralelo com a realidade brasileira em vários níveis”, conta Ana Lima, editora da Galera.

Premiado pelo National Book Award e, nos últimos dias, selecionad­o pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio como um dos melhores infantojuv­enis do ano, o livro chamou a atenção da historiado­ra e professora da UFRJ, Giovana Xavier, que idealizou o projeto Qual é a sua semente? com a professora Claudieli, da EM Daniel Piza. Os 50 alunos do curso Intelectua­is Negras da UFRJ, todos cotistas, já leram e em 2018 recebem o grupo de 30 adolescent­es (de 11 a 15 anos) para uma conversa na universida­de sobre a leitura, o presente e o futuro.

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GABRIELA BILÓ/ESTADÃO Voz. Ketty Valêncio só vende obras de autores menos conhecidos em sua livraria
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ALINE MACEDO Outra dor. Vilma Piedade criou a palavra dororidade em 2017

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