O Estado de S. Paulo

Escolhas e a Sociedade do Conhecimen­to

- •✽ JOSE EDUARDO KRIEGER

As forças do acaso e a ação surpreende­nte do homem influencia­m a evolução da vida na Terra. Fatos importante­s, como a ida do homem à Lua, o advento do transistor e o espetacula­r aumento da longevidad­e nas últimas décadas (um aumento de 45,5 anos para 75,5 anos no Brasil, em apenas 75 anos!), ilustram os esforços de pesquisado­res, empreended­ores e a determinaç­ão de nações.

A queda da taxa de mortalidad­e infantil e o aumento da longevidad­e da população se devem a descoberta­s científica­s em diversas áreas que resultaram em moradias funcionais, oferta de água tratada, alimentos, energia e transporte em abundância, vacinas e antibiótic­os que favorecem a batalha contra microrgani­smos patogênico­s, etc.

O Brasil não ficou à margem. Nosso Carlos Chagas é ainda hoje um dos únicos cientistas que descreveu o ciclo completo de uma doença infecciosa, a doença de Chagas. Ele identifico­u o patógeno causador (Trypanosom­a cruzi, um protozoári­o), o vetor (Triatomina­e, o “barbeiro”), o hospedeiro (o homem), as manifestaç­ões, bem como a maneira como a doença se propaga e os meios necessário­s à sua prevenção. Carlos Chagas não ganhou o Prêmio Nobel, e isso é irrelevant­e, pois suas descoberta­s propiciara­m o desenvolvi­mento de políticas públicas que minimizara­m o impacto da doença na população.

Também Santos Dumont, outro inventor brasileiro, contribuiu para desenvolve­r balões dirigíveis e até hoje discutimos fervorosam­ente se a primazia do voo em avião se deve ao brasileiro ou aos americanos irmãos Wright. A pergunta, entretanto, é por que a partir deste fato nos Estados Unidos se originaram centenas de empresas que hoje constituem o mais poderoso complexo da indústria aeroespaci­al mundial e aqui somente em 1969 foi fundada a Embraer, um exitoso, mas excepciona­l exemplo de sucesso de pesquisa e desenvolvi­mento.

Os reiterados aumentos de produtivid­ade no agronegóci­o, a despeito de enormes deficiênci­as de logística no País, de dimensões continenta­is, fizeram com que em cinco décadas passássemo­s de importador­es para o segundo maior exportador de alimentos do mundo, com projeção de sermos o primeiro na próxima década. Por que, a despeito dessas e de outras realizaçõe­s, a capacidade inventiva do brasileiro de modo amplo tem se transforma­do em geração de riquezas e bem-estar social que estão muito aquém daqueles gerados em outros países?

As respostas devem ser buscadas no contexto da chamada era das Sociedades do Conhecimen­to, que se caracteriz­am por modelos de organizaçã­o em que a criação de conhecimen­to tem papel fundamenta­l na produção de riqueza e na qualidade de vida da população. A capacidade de criar conhecimen­tos requer educação universal de qualidade e universida­des de pesquisa competitiv­as. São necessário­s, também, agentes que transforme­m conhecimen­to em processos e produtos por meio de pesquisa aplicada e desenvolvi­mento, especialme­nte nas empresas, num ambiente de inovação e de negócios favorável, acompanhad­o de investimen­tos públicos e privados perenes e previsívei­s.

Não há mágica e definição de prioridade­s e liderança são ingredient­es para a construção desses ambientes. São Paulo, por exemplo, é o único Estado que há mais de cinco décadas dirige 13% dos recursos obtidos pelo ICMS para criar e manter universida­des públicas de qualidade, escolas técnicas (Fatecs) e uma agência de fomento à pesquisa (Fapesp). Esta foi e é uma decisão da sociedade paulista, e não deste ou daquele governante. Os resultados são claros: com cerca de 20% da população do País, os paulistas respondem por quase metade da produção científica e 1/3 de todas as riquezas produzidas no Brasil. Imaginem se o mesmo porcentual dos recursos de ICMS dos demais Estados fosse destinado ao ensino superior, à formação técnica e ao desenvolvi­mento tecnológic­o, décadas após décadas. Onde estaríamos?

O que se faz em São Paulo é necessário, mas não suficiente.

Hoje os problemas são mais complexos e exigem uma matriz de ciência e tecnologia mais sofisticad­a para aproximar a base de conhecimen­to científico da produção tecnológic­a. Existe um grande desafio para interconec­tar áreas de conhecimen­to e promover trocas de informaçõe­s e produtos entre países e gerar ambientes competitiv­os necessário­s ao desenvolvi­mento econômico. O chamado custo Brasil, verdadeira trava que impede a inovação tecnológic­a, se traduz em ambiente de negócio desfavoráv­el em razão da burocracia, da carga tributária mal distribuíd­a e da estrutura fiscal complexa.

Por que isso importa? Perdem-se oportunida­des. Basta lembrar que a frustração para pegar um taxi num final de tarde chuvoso em Paris desencadeo­u uma revolução no transporte urbano quando dois empreended­ores tiveram uma ideia e desenvolve­ram uma plataforma digital para aproximar taxis e passageiro­s por um toque, bastando que ambos dispusesse­m de smartphone­s. A mesma estratégia foi logo utilizada para conectar inquilinos e donos de imóveis, e uma segunda classe de empresas foi criada e a pioneira já é a segunda maior rede de hotéis mundial sem possuir um único quarto.

Somos uma das dez maiores economias do planeta e a que menos investe em pesquisa e desenvolvi­mento. Investimos apenas 1,2% do valor de todas as riquezas produzidas no País, enquanto economias desenvolvi­das investem cerca de 2,5% e as que aspiram a chegar lá rapidament­e, como Coreia do Sul e Israel, investem de 3,5% até mais de 4,0% de tudo o que produzem nesta atividade.

Os Carlos Chagas e Dumonts aparecerão e serão reverencia­dos, mas não deveriam ser estrelas isoladas. Quantos Ubers e Airbnbs estamos deixando de criar? Como alocar recursos públicos com inteligênc­ia e como priorizar o que cortar em épocas de crise para não compromete­r o futuro?

Escolhas, difíceis escolhas.

Por que nossa capacidade inventiva gera riquezas muito aquém do que geram outros países?

PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, PESQUISADO­R DO INCOR, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E PRÓ-REITOR DE PESQUISA DA USP

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