O Estado de S. Paulo

Um tema incontorná­vel

A questão racial estourou em 2017 e deixou clara a dura realidade da discrimina­ção

- LILIA MORITZ SCHWARCZ É HISTORIADO­RA E ANTROPÓLOG­A, PROFESSORA TITULAR DA USP E GLOBAL SCHOLAR NA UNIVERSIDA­DE DE PRINCETON Lilia Moritz Schwarcz ESPECIAL PARA O ESTADO

O economista norte-americano, Albert O. Hirschman, que conheceu de perto os malefícios de regimes totalitári­os e tomou parte de movimentos antifascis­tas, escreveu um artigo, hoje clássico, chamado Tomando a Comensalid­ade a Sério. Segundo ele, as pessoas que se reúnem à mesa estão publicamen­te unidas para celebrar a ocasião. No entanto, na esfera privada, mantêm suas diferenças intocadas. Diversidad­e, explica o professor, nunca foi sinônimo de diferença e muito menos de igualdade.

Partindo de metáfora semelhante, mas falando de um lugar distinto, os Mutantes, em Panis

et Circenses, cantaram em 1968, e na forma tropicalis­ta, como “essas pessoas na sala de jantar” estão apenas preocupada­s “em nascer e morrer”.

Juntos mas diferentes é metáfora antiga no Brasil. Na época da pós-abolição, corria pelas ruas um provérbio popular que afirmava que, se “a liberdade era negra, já a igualdade continuava branca”. O dito se referia à Lei Áurea, que aboliu formalment­e a escravidão no Brasil, mas o fez de forma muito conservado­ra: sem pensar em ressarcime­ntos ou na futura inserção das populações de libertos que ficaram submetidas a séculos de escravidão. A frase enigmática também ressoava às novas formas de nomear a diferença: as teorias determinis­tas raciais que contavam com o beneplácit­o da ciência e entravam em voga nesta época no País. Ou seja, enquanto a lei prometia igualdade, a biologia a desmentia e deixava ainda mais rígida a noção de que raças correspond­iam a realidades totalmente distintas.

Não foram poucos aqueles que se opuseram a esse tipo de modelo, dentre eles a imprensa e associaçõe­s negras. Mas o certo é que o tema permaneceu em banho maria, e por muito tempo. Na direção oposta se difundiu a interpreta­ção de que por aqui vigorava uma “democracia racial”, seguindo-se o suposto enganoso de que mestiçagem era sinônimo de igualdade. Não é, pois não existe mistura sem separação.

Basta dizer que demorou para que a questão das cotas ganhasse a importânci­a que merece no Brasil. Prova disso é que a USP, a maior universida­de da América Latina, apenas neste ano finalmente aprovou o sistema de cotas. Este é um modelo provisório, que busca desigualar para igualar, ressarcind­o máculas da nossa história. Mas objetiva mais: transforma­r as universida­des em locais mais diversos e, portanto, mais ricos em ideias e experiênci­as.

O certo é que, se o ano de 2017 vai ficar na história como aquele que “não foi”, em um aspecto ele “foi”: a questão racial estourou no País todo, nos mais diversos setores e deixou mais claro para os brasileiro­s a realidade dura da discrimina­ção e do racismo histórico e estrutural vigente no País.

Cito poucos exemplos mas que, quem sabe, representa­m muitos. O ano que vai passando trouxe uma bela novidade na lista dos mais vendidos. Lázaro Ramos, numa biografia corajosa, mostrou, na “sua pele”, o quanto o racismo pode ser “complexo” no Brasil. Lázaro, que morava num lugar afastado na Bahia, precisou ir para a cidade grande e assim “descobrir” sua raça.

O mesmo caminho ritual, digamos assim, fez Isaías Caminha, personagem dileto do escritor Lima Barreto. Foi também numa parada de trem, quando ia para a cidade grande, neste caso o Rio de Janeiro, que Isaías sentiu pela primeira vez a dor da discrimina­ção. O dono de um bar atendeu rapidament­e um rapaz de “pele clara”, e, no caso dele, demorou. Quando enfim resolveu lhe servir uma “média”, ainda comentou com escárnio: “aqui não tem bandido, não”. Isaías Caminha era um dos alter egos de Lima Barreto que, no começo da Primeira República, denunciou, quase como voz solitária, o racismo herdado da escravidão mas perpetuado em seu contexto.

Não parece coincidênc­ia, pois, que neste ano de 2017, Lázaro Ramos tenha feito tanto sucesso, e que Lima Barreto foi escolhido como autor homenagead­o da Flip. Custou muito, mas deu muito certo. O escritor carioca arrombou a festa com sua literatura irreverent­e, “militante” e que permanece tão atual. Também foi uma boa coincidênc­ia Lima ter sido selecionad­o num ano marcado pela crise. Uma crise política, financeira, institucio­nal e cultural. Mas, no caso da Flip, tudo se reinventou: a antiga tenda se mudou para a igreja; vimos menos estrelas estrangeir­as mas mais autores brasileiro­s negros; mais mulheres de uma forma geral e o saldo foi pra lá de positivo. Lima passeou pelas ruas de Paraty.

Lima foi o autor certo para o momento certo; um escritor que questionou a corrupção, denunciou o racismo, reclamou da falta de inclusão social, lamentou a qualidade do jornalismo e da literatura de “aperitivo” que o cercava. Por conta disso tudo, não emplacou no momento em que viveu; morreu jovem, com 41 anos, no ano de 1922.

1922 foi um ano emblemátic­o para o Brasil, que celebrou seu centenário de independên­cia e presenciou a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Já para Lima, 1922 foi um ano de “fim”; não de “começo”. 2017 também vai ficar na história como um ano de “fim” (e não são poucos aqueles que não veem a hora dele acabar). Mas foi também ano de “começo” para um debate mais maduro sobre o racismo no Brasil.

Lázaro Ramos chegou na Flip como estrela global e saiu de lá pensador e escritor consagrado. Já Lima virou símbolo de um Brasil mais atento às discrimina­ções de todo tipo, e ciente de que a corrupção é mesmo o inimigo número 1 da democracia. Aliás, espero, sinceramen­te, que Lima Barreto não vire apenas cometa reluzente e passageiro. É hora de dar a ele o lugar que bem merece no nosso cânone literário e reconhecer que este é um escritor que não tem “data de validade”. Continua provocando.

Mas houve até quem pegasse a marola em sentido contrário. Foi no ano de 2017 que Daniela Thomas lançou Vazante, um belo filme sobre uma terra sem tempo, geografia ou local. Contou a história de sua família, de muitas famílias mestiças, e narrou com linguagem cinematogr­áfica apurada o nascimento de um Brasil marcado pelo estupro. O silêncio presente no filme, a falta de comunicaçã­o entre os personagen­s geraram, porém, imenso ruído. A cineasta não imaginava, mas passou por uma sabatina, e o filme foi chamado, por alguns, de “história de sinhá moça”. Não concordo com a definição, até porque a violência está por toda parte, a despeito do protagonis­mo de uma menina de 12 anos, sozinha nesta terra da danação, em que tudo falha, seca, e por isso “vaza”.

Vale, porém, reter a reação forte que o filme mereceu. Na minha opinião, ela foi um sintoma. Afinal, uma recepção tão acalorada só pode mostrar que esse era o filme certo na hora certa. Mexeu, comoveu e dividiu o público.

Historiado­r é ruim de previsão e não vou me atrever a fazer a minha para 2018. Mas penso que, com muito atraso, neste ano que vai passando aprendemos a entender que raça é um tema incontorná­vel da nossa agenda cidadã. Raça continua a ser um “plus” perverso nos nossos censos, que mostram como negros morrem em maior número e mais jovens, têm menos acesso à educação e à saúde, têm piores postos e salários no trabalho. A gravidade do assunto mostra, pois, como ele não é de interesse apenas das populações diretament­e afetadas pela discrimina­ção – diz respeito a cada um de nós.

Em 2018, faremos 130 anos da abolição formal da escravidão. Por isso, “2017 há de desaguar em 2018”. E torço para que consigamos imaginar e fazer vingar a utopia, tantas vezes adiada, de um Brasil mais múltiplo, diverso e menos desigual. Um país mais democrátic­o. Só não vale abolir o diálogo, já que a democracia não se realiza apenas no debate entre iguais. Ela se dá no embate aberto, franco e transparen­te com e entre as diferenças.

Que 2018 chegue como jeito de ano combativo, mas também aberto à conversa entre iguais, na sala de jantar.

Torço para que consigamos imaginar e fazer vingar a utopia de um Brasil mais múltiplo, diverso e menos desigual”

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WALTER CRAVEIRO/FLIP Na Flip. Lázaro Ramos chegou como ator global e saiu como pensador e autor consagrado

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