O Estado de S. Paulo

2017, O ANO QUE PARA ELES FEZ A DIFERENÇA

Alguns ganharam de coração a emprego enquanto outros superaram da aids ao luto

- Edison Veiga

Às 7 horas do dia 15 de setembro, um médico entrou no quarto onde estava a enfermeira Lilian Alencar, de 34 anos. “Fique em jejum. Temos um coração para você”, disse. Internada no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universida­de de São Paulo, o Incor, desde julho, ela vibrou de felicidade.

Depois de dois meses internada à espera de um doador, ela finalmente havia conseguido. Depois da cirurgia, a emoção continuou. “A primeira lembrança que tenho foi quando eu acordei e me dei conta de que estava respirando sem fazer força! O ar fluía naturalmen­te. Era a felicidade em essência.”

Foram ainda dois meses até a alta do hospital. Convivendo com uma insuficiên­cia cardíaca grave desde 2006, para Lilian este ano será sempre lembrado como o mais importante de sua vida. “Eu e meu novo coração estamos começando a viver uma vida incrível juntos. 2017 é meu ponto de partida, para o resto da vida. Eu venci.”

E não foi bom só para ela. O eletrotécn­ico Kanda Diamala, de 23 anos, é outro que endossa o coro de Lilian. Nascido em Angola, ele vivia uma fase muito difícil em seu país. Ganhava o equivalent­e a US$ 100 por mês

Vitórias e planos “Eu gritava. Liguei para todos os que eu amo. Eles choravam de emoção. Eu não iria mais morrer. Eu seria salva. Finalmente teria uma vida digna, saberia como é viver.” Lilian Alencar

e, com esse dinheiro, precisava sustentar quatro irmãos e os pais. A vontade de tentar uma vida em outro país já o perturbava. “Ouvia muito sobre o Brasil. Angolanos que tinham vindo para cá diziam sobre o acolhiment­o do brasileiro, que com esforço se consegue emprego.”

Chegou em 17 de julho. “Trouxe vários números de telefone de angolanos que estavam aqui. Ainda do aeroporto, em Guarulhos, fiquei tentando ligar para eles, mas ninguém atendia”, relembra. “Quatro horas mais tarde, um angolano me viu perdido no aeroporto e me ensinou a chegar ao Metrô Itaquera.”

De Itaquera, ele não tinha para onde ir. Foram duas noites dormindo na estação do metrô. “Na segunda, roubaram minhas coisas”, diz. Até que um conterrâne­o falou para ele sobre os trabalhos assistenci­ais da Missão Paz, organismo da Igreja Católica no bairro do Glicério que dá apoio a imigrantes.

Foram dois meses vivendo ali até conseguir um emprego. Desde setembro, Kanda trabalha como faxineiro no Colégio Santa Amália, no bairro da Saúde. “Vou fazer carreira aqui”, celebra ele, que agora ganha um salário de cerca de R$ 1,3 mil.

HIV superado. Para Diego Vieira, de 22 anos, também foi um ano de transforma­ção, de mudança. Em seu caso, um marco: a formatura. Portador de HIV desde o nascimento, ele acabou a faculdade de Enfermagem na Uninove. “Ao longo de minha vida, pelo fato de ser portador do vírus, fiquei internado pelo menos dez vezes. Esse convívio com o meio hospitalar certamente influencio­u em minha escolha profission­al”, diz ele.

Diego se trata no Instituto de Infectolog­ia Emílio Ribas, referência no tratamento para quem tem o vírus. “Preciso passar lá a cada dois ou três meses, para retirar os medicament­os de uso constante”, conta. Agora formado, alimenta o sonho de trabalhar lá. “Minha maior vontade é poder ajudar soropositi­vos como eu”, planeja.

E foi com uma tragédia familiar que o ano de 2017 começou para o ex-executivo de uma multinacio­nal Tom Almeida, de 47 anos: a morte de um primo, aos 39 anos, em janeiro, depois de sofrer três anos com um câncer. “Descobri que o Brasil é um dos piores lugares do mundo para se morrer. Porque ainda estamos muito distantes em termos de cuidados paliativos.”

Tom, que estava em meio a uma formação para atuar como coach, decidiu que era importante começar a tratar da morte. Romper o tabu. Trazer o tema para as discussões. Em São Paulo, criou o Cineclube da Morte, no Caixa Belas Artes, e tem salas lotadas há seis meses. Também foi um dos idealizado­res da Jornada Eduardo Alferes de Cuidados Paliativos, com 300 profission­ais de saúde de diversas áreas. “Foi um dia inteiro de informaçõe­s, trocas e aprendizad­os”, resume. Agora pretende lançar no Brasil um projeto americano chamado “Vamos Jantar e Falar Sobre a Morte?”.

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AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO Conquista. Após dois meses de espera, Lilian conseguiu um doador e um novo coração

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