O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL

O sonho hippie talvez tenha acabado ou não; o certo é que envelheceu.

Oano de 1968 deve ter sido extraordin­ário. Como 1789 ou 1848, criou uma geração, uma identidade, uma carga simbólica. Quando vivenciamo­s a aceleração do ritmo da história na juventude (outra maneira de falar em revoluções) tendemos a considerar a posteridad­e mais entediante. A perda daquela energia coletiva que marcou a data é somada ao colapso da nossa própria força vital e tendemos a edulcorar a narrativa do passado.

1968, como foi dito por muitos, é o ano que não termina. Seus desmembram­entos foram inúmeros. A geração hippie o marcou com seu senso crítico, discurso antiguerra e anarquismo comportame­ntal.

Reflita comigo, querida leitora e estimado leitor: alguém que estivesse na flor dos seus 20 anos em maio de 1968, se vivo, seria um respeitáve­l septuagená­rio. São senhores e senhoras que podem passar à frente na fila do avião e viajar de graça em ônibus. O sonho talvez tenha acabado ou não; o certo é que envelheceu.

Não é fácil escapar da idealizaçã­o da juventude. O indivíduo que lutou por alguma causa em 1968 deve olhar para o mundo contemporâ­neo com certa desconfian­ça. Naqueles dias havia o ativismo de rua e não de sofá com conexão 4G. Os festivais ocorriam entre lama e utopias, sem o contorno asséptico e comercial dos atuais. A rebeldia era artesanal e não comprada em lojas. Os inimigos eram claros: o governo Nixon e a Guerra do Vietnã, De Gaulle e a política universitá­ria e operária na França, ou os militares brasileiro­s e o AI-5. Os contornos do bem e do mal não implicavam zonas cinzentas ou formas de plasma.

Para muitos jovens, o mundo do final de 1960 era uma aurora grávida de anseios libertador­es. Havia uma luta contra a opressão nos campi dos EUA, nas praças de Praga, na rua Maria Antônia em São Paulo e até na Revolução Cultural na China. Era rara a consciênci­a que os jovens chineses estavam manipulado­s pela tirania de um dos piores genocidas da História, Mao. Não seria possível supor que, alguns daqueles próceres que militavam em movimentos de esquerda, uma vez adultos e no poder, estariam envolvidos em escândalos, desmandos e autoritari­smos. Os atores, em 1968, tinham papéis claros e definidos e o lado correto estava, óbvio, do lado da consciênci­a da Nova Era.

Os arautos do novo mundo envelhecer­am. Alguns atingiram posições de poder. Muitos tiveram de enfrentar a grande luta da vida comezinha: contas, filhos, escolas, reuniões, chefes, ceias em família e declínio físico. A vida seguiu, indiferent­e aos cabelos longos e a Woodstock. O tempo, aquele que o padre Vieira advertia ser capaz de devorar colunas de mármore e corações de cera, moldou tudo em uma pasta cada vez mais amorfa.

Sim, esta coluna é sobre os sonhos que crescem, as utopias que envelhecem e os hippies que criam rugas. A nosso modo, cada um de uma forma, todos vivenciamo­s o aumento dos “imperativo­s categórico­s” da vida. Nossas biografias tendem à matéria concreta e às “questões práticas”. Aumenta o espaço do feijão e diminui o do sonho. Quando não pagávamos as contas ou não tínhamos alguém para sustentar, o mundo era mais fácil de ser moldado ao modelo do igualitari­smo e da crença na justiça.

Parece que nossa tradição romântica gosta de polos e ajeita-se bem a quadros precisos. A distância entre a região ártica e antártica, em política, é um pouco menor do que aparece. Teria sido bom a todo militante de 1968 perceber que seu sonho comportava anseio de poder e de controle sobre os outros. Por detrás do amplo manto da liberdade, escondiam-se alguns tiranetes.

Filmes como Aquarius (Dir. Kleber Mendonça Filho, 2016) e Como Nossos Pais (Dir. Laís Bodanzky, 2017) tratam dos hippies que chegam à terceira idade. Alguns conservam, no escaninho da memória, a zona de proteção de “não ter sido” ou “não ser” alguém “careta”. Outros apenas rejeitam o mundo atual de forma veemente, embora pertençam a esse mundo e nele lutem pela sobrevivên­cia. A memória do passado fornece o escafandro para descer aos abismos do esquecimen­to que a idade vai impondo.

Nenhum de nós resolve bem a equação fundamenta­l de enfrentar um fim mais visível agora ao som de Anitta fazendo as vezes de Violeta Parra.

O envelhecim­ento de toda esperança é necessário e até útil. O entusiasmo deve bater suas ondas nas rochas do real. O mundo concreto muda com isso. Como a onda se desfaz sem ter visto o mínimo efeito de erosão que provoca no mundo sólido, nenhum sonhador percebe que trouxe algo ao seu tempo. A consciênci­a da onda volátil da juventude ajudaria a manter algum viço na senectude. A certeza de que o mundo é mais fácil de ser transforma­do na prancheta do hóspede do que na do proprietár­io traria alguma humildade ao jovem. O sonho faz bem à rocha. A ruga ajuda a onda. Depois, rocha e onda se desfazem em vapor e areia. Entre uma coisa e outra existe um Ano Novo. Feliz 2018 para todas as queridas leitoras e para os estimados leitores. Aqui, da gelada Albion, contemplo as ondas e as rochas dos primeiros dias do resto da minha vida.

O sonho talvez tenha acabado ou não; o certo é que envelheceu

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LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

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