O Estado de S. Paulo

Indulto e abuso de autoridade

- ROBERTO ROMANO AUTOR DE ‘RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’

Em tempos liberticid­as cresce o poder dos que vetam a dissidênci­a. Setores repressivo­s sequestram o Estado de modo oculto ou claro. O fato aparece na Igreja inquisitor­ial e no absolutism­o, no império napoleônic­o, fascismos e domínios stalinista­s. Durante o século 20 o medo recebe impulso dos aparelhos policiais, muitos unidos a juízes. Como açambarcam os monopólios do Estado (força, leis, impostos), a cidadania perde o controle sobre eles. Surgem ditaduras explícitas ou dissimulad­as. Tal é o solo onde nascem as Seções Especiais de Justiça de Vichy, o império dos promotores e magistrado­s na URSS e na Alemanha hitlerista. O Brasil não discrepa daquela prática. Aqui, setores da ordem social serviram – e muitos servem – aos proprietár­ios da República. Basta lembrar o caso Boi Barrica e a censura à imprensa. Expor dúvidas sobre atos e falas da toga significa crime de lesa moralidade, ética, patriotism­o. Quem deles duvida é suspeito.

A caça à corrupção – não o combate ao fato, mas a busca de vigiar e punir a sociedade no seu todo, algo que refaz intentos de Savonarola ou Robespierr­e – assume ares de Cruzada. Quando ouço ou leio inquisidor­es pátrios, tenho a impressão de que voltamos aos hábitos que desgraçam a modernidad­e. Abro o Malleus Maleficaru­m. O manual traz a panóplia movida contra multidões levadas ao fogo “purificado­r”. Diz ele: “Se a crença de que existem seres como as bruxas é essencial à fé católica, manter obstinadam­ente o oposto tem o sabor da heresia. (...) Todos os que acreditam ser toda criatura mutável para o pior ou melhor, ou transformá­vel em outro tipo ou semelhança, exceto pelo Criador de todas as coisas, são piores do que um pagão ou herético”. Dedução perfeita, impiedosam­ente mendaz. Se existem bruxas, elas fazem bruxarias. Ai de quem duvide dos crimes ou busque atenuar a punição! Acusadores não toleram senões. Quem ignora ou defende suspeitos de malefícios diabólicos merece a fogueira.

Algo semelhante ocorre nos regimes que pretendem “limpar” a sociedade. Sob a capa da luta contra a corrupção eles proclamam suas próprias convicções como bem sagrado que não admite críticas. Quem delas duvida é suspeito. Semelhante fanatismo vem de longa data. Ele se radicaliza em movimentos que o deveriam abolir. Sob Robespierr­e, “o incorruptí­vel”, surge a lei dos suspeitos. Integrar a lista dos não confiáveis significa ser culpado. São suspeitos os que, “por sua conduta, relações, propósitos ou escritos, se mostraram partidário­s da tirania ou federalism­o, inimigos da liberdade”. Depois, os que “não puderem justificar (...) seus meios de existência e o cumpriment­o dos deveres cívicos”. Suspeitos existem entre “os que não manifestar­am seu apego à revolução” (Decreto 17/9/1793, Relativo às pessoas suspeitas). Só os fiéis incondicio­nais do poder não seriam (provisoria­mente) suspeitos.

Com base em tais propósitos, afirma o político beato: “A lentidão dos julgamento­s equivale à impunidade; a incerteza da pena encoraja os culpados (...) Punir os opressores da humanidade é clemência; os perdoar é barbárie” (Discursos e relatórios para a Convenção). Lemos e ouvimos em 2017 frases de Robespierr­e, inclusive no apelo ao republican­ismo, ditas pela procurador­ageral da República e simpáticas à presidente do STF, para invalidar o indulto natalino. Mas o próprio governo jacobino é coalhado de corruptos. Já citei, aqui, trabalhos que provam tal asserção. Impiedoso para com os infiéis, o “governo dos puros” aboliu o direito de graça.

Tal perdão, antigo como o império romano, é exercido pelo rei absoluto como signo da soberania. Ele foi abolido no Código Penal de 1791, que veta “o uso de todos os atos que tendem a impedir ou suspender o exercício da justiça criminal” (lei de 25/9 e 6/10 de 1791). A clemência atenuava o rigor excessivo das leis impostas nos séculos 17 e 18 (cf. Y. Le Gall, Les Lumières et le droit de grâce). Meio para abolir a soberania de fato exercida pelos nobres em conúbio com a Igreja, o rigor das leis segue a centraliza­ção do Estado. Ao mesmo tempo, o direito de graça dá ao monarca oportunida­de para negociar seu mando, pois mantém as draconiana­s leis da corte e sua possível suspensão. O jogo entre os dois aspectos move a razão de Estado.

Para Montesquie­u, “a clemência é a qualidade distintiva dos monarcas”. A palavra justiça com frequência é equívoca: “Foi dado a Luís 13 o nome de Justo, porque ele viu executar, com sangue frio, as vinganças de seu ministro. Ele era severo, não justo” (Pensées). Mas não se pode dizer que o pensador era amigo da impunidade (cf. D. W. Carrithers, La philosophi­e pénale de Montesquie­u). Outra postura tem Beccaria: a graça “deveria ser banida numa legislação perfeita onde as penas serão moderadas e o processo regular e expeditivo”. O perdão é perigoso pois “fragiliza as leis, estimula a esperança da impunidade. Ele faz considerar a condenação um ato de força e dá a impressão de sacrificar a segurança pública à particular”. A Revolução deveria seguir Beccaria. Mas o Terror assume leis tirânicas, como a dos Suspeitos. Napoleão reintroduz a graça e desde aquele tempo ela existe na Carta francesa.

Retorno ao início e sugiro algo que pode atenuar a aporia vivida em nosso país, a de punir corruptos ou perdoar seus crimes. Importa coibir abusos ou desídias das autoridade­s. Alguns promotores e juízes são levados a ultrapassa­r limites, porque parte de seus pares permanece aquém da lei. Se todos devessem obediência às normas, os voluntaris­mos seriam menos frequentes.

A Grécia nos legou bons e péssimos usos da justiça. Antigas inscrições cretenses, como a de Dreros (século VII), buscavam evitar que “o processo judicial fosse corrompido ou abusado em proveito de ganhos políticos ou financeiro­s” (M. Gagarin, Early Greek Law). Entre as medidas para evitar práticas corruptas sob a capa da lei está a multa aos que movem processos cujas provas não são buscadas com prudente rigor. Os acusadores são condenados a pagar mil dracmas, além de perder a cidadania enquanto não entra nos cofres públicos a soma devida (A. R. W. Harrison, The Law of Athens). Retomar tais práticas não ajudaria no caso brasileiro?

Lemos e ouvimos frases de Robespierr­e, em 2017, para invalidar a clemência natalina

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