Captando a vida
Começa no CCBB retrospectiva de Raymond Depardon, grande cineasta e fotógrafo francês
Raymond Depardon era jornalista, correspondente de guerra. Um amigo morreu no Camboja e ele começou a pensar que aquele poderia ser seu futuro. Outro amigo lhe abriu uma porta. Ele havia sido um dos fundadores da agência Gamma, houve um grande terremoto no Peru, e Depardon atravessou o Atlântico para documentar o horror. Descobriu não apenas a América Latina, mas também que sua vocação era fotografar gente. Foi ao Chile de Salvador Allende fotografar a movimentação ‘du peuple’ (do povo) no regime da Unidade Popular. O resto é história. Raymond Depardon, grande fotógrafo, descobriu o cinema e virou grande cineasta. Um autor.
No CCBB, começa nesta quarta, 3, uma retrospectiva dos filmes de Depardon, incluindo o mais recente, 12 Jours/12 Dias. Com um lançamento pequeno, o filme despertou um interesse social muito grande e ultrapassou 100 mil espectadores. Haverá, em São Paulo, no dia 18, um debate. “Na França, um paciente pode ser internado à revelia no sistema manicomial. Histórias terríveis foram consequência disso, mas hoje, depois de 12 dias de internação, todo paciente tem de passar por um juiz. Não é só uma questão humanitária – é política.”
Depardon conversa pelo telefone com o repórter. No ano passado – 2017 ainda é tão recente –, houve a exposição de suas fotos no Rio. São Paulo vê só a retrospectiva dos filmes. Depardon fez raras ficções. É, principalmente, documentarista, mesmo que ‘nas bordas’. Documentou camponeses, pequenos fazendeiros, as instituições. Sua obraprima talvez seja Instantes de Audiência, de 2004, que foi referência para Maria Augusta Ramos em Justiça. Depardon cita Serge Daney, o crítico que foi editor de Cahiers du Cinéma. “Ele definia meu cinema como ‘miraculeux’, milagroso. Na verdade, acho que na minha fotografia, como no meu cinema, perpassam as mesmas obsessões. A África, a América Latina, o deserto, homens e mulheres capturados ao vivo, com suas grandezas e misérias, sem idealizações. É o que faz nossa humanidade.”
E Depardon continua – “Tive uma infância tranquila, numa granja no vale do (rio) Saône. É uma região brumosa e vem dela minha atração, até hoje, pela neblina, que dá grandes fotos”. Uma das mais famosas – um cão, numa Santiago fantasmagórica, em 2007. “Como um assassino, volto ao local do crime”, ele brinca. Sua história – “Meus pais nasceram com o século passado, e me tiveram um pouco tarde. Tive sempre a impressão de viver entre duas gerações, dois séculos. Daí meus temas – o mundo rural, o ascetismo, o universo mineral do deserto. Recentemente, houve uma exposição de minhas fotos no (Instituto) Cartier Bresson, em Paris, que dividiu o material em temas. As viagens, o sofrimento, a dor ‘de l’enlevement’ (de ser removido, desaparecer), etc. E sempre o gosto pelo real, a recusa do estetismo. Assim como (Serge) Daney dizia que eu era milagroso ao captar a vida diretamente, outros já me definiram, e eu próprio me defino como um fotógrafo e um cineasta silencioso.”
Na fotografia, tudo depende da concentração, e de um ‘clic’. “Minha primeira câmera foi roubada de meu irmão. Era tímido, e usei a câmera para me relacionar com o mundo. E, como naquela época não era preciso faculdade, comecei como aprendiz de fotógrafo. De repente, estava no mundo. No Vietnã, na África. E sempre sozinho, o que alimentou em mim o sentimento de solidão, e de observação. Sofria, mas tudo isso alimentou e estimulou minha curiosidade.” Depardon chegou ao cinema nos anos 1970, após o célebre Maio, que em 2018 comemora 50 anos. “Não fui um daqueles revolucionários de Maio, porque não era nem me sentia estudante. Não tive uma educação formal. Sofri acusações – diziam que minhas fotos e, depois, os filmes não tinham um ponto de vista. E eu retrucava que o ponto de vista está no enquadramento, na duração do plano. Assim continua sendo.”
Com o é ser fotógrafo e cineasta? “Tenho a impressão de que é o que me salva. Embora sejam técnicas que produzem resultados diferentes, o quadro, a luz são parecidos, senão iguais. A foto é mais urgente. Um clic, e você conseguiu ou não. No cinema, o tempo é outro, mas, no limite, a expressão é a mesma.” Dar um testemunho, refletir. “O fato de eu ter ido muito cedo para o mundo, de alguma forma, me deu uma consciência precoce da mundialização. Descobri a desigualdade, a revolta, a repressão. Não sei se os outros sentem, mas sinto uma violência muito forte em mim. Uma cólera – esse não é o mundo que sonhei.”
Nem por isso Depardon, aos 75 anos – nasceu em 1942 –, perdeu a esperança. “Seria terrível. Vivemos um momento de conservadorismo galopante, mas tanta desigualdade não pode resultar numa coisa boa. Sob uma aparência de ordem e tranquilidade, o mundo está em ebulição.” Diz, o que pode desconcertar – “A cor sempre fez parte da minha vida, desde o preto e branco”. Na sua série de Perfis Camponeses – A Aproximação, O Cotidiano e A Vida Moderna –, no seu Diário da França ou nos ‘instantes de audiência’ da 10.ª Câmara de Justiça de Paris, Depardon não faz senão aquilo que o título de outro grande filme dele revela. Donner la Parole, Dar a Palavra (a quem não tem). É, como dizem os franceses, ‘un grand monsieur’ (um grande senhor) de cinema.