O Estado de S. Paulo

O legado de 1968

Obras que mudaram mentalidad­es e uma pulsão progressis­ta forte talvez sejam as maiores heranças

- Luiz Zanin Oricchio

Há uma primeira pergunta a ser feita: o cinquenten­ário de 1968 será uma megaefemér­ide ou cairá no vazio por ter esgotado seu significad­o histórico? É o que veremos em 2018, em especial ao se aproximar o mês de maio. Afinal, o Maio de 1968, em Paris, é, para o bem e para o mal, o emblema de tudo que esse ano representa para a história recente.

1968 é um problema. A começar por sua datação. Há quem sustente que 68 começou em 1967 – e não deixa de ter razão. Muita coisa, tanto no plano político como no artístico, fermentava já no ano anterior àquele que seria conhecido como o ano rebelde por excelência, o “ano que não terminou”, como o chamou o jornalista Zuenir Ventura no livro (best-seller) dedicado a ele em 1988.

No Brasil, a rebeldia estudantil viria a explodir em 1968 com a morte do estudante Edson Luis Souto, no Rio, e a batalha campal entre Mackenzie e USP, a chamada “guerra da Maria Antonia, em São Paulo. No Festival da Record de 1967, Caetano Veloso interpreto­u Alegria, Alegria e Gilberto Gil, Domingo no Parque, dois emblemas da nova música que surgia. Mas o disco Tropicália, manifesto do movimento, viria a público somente em 1968. Duas das fontes de inspiração para o Tropicalis­mo, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e a peça

O Rei da Vela, montada por José Celso Martinez Corrêa, são de 1967.

1968 é assim, um ano de chegada, em que tendências já anunciadas se cristaliza­m em radicalism­o político, criativida­de intensa, obras duradouras, mobilizaçõ­es de rua – e uma grande frustração. Foi, em todo mundo, “a revolução que não aconteceu”. Mas que, em não acontecend­o, tudo mudou. Um paradoxo, sem dúvida, mas que se esclarece quando se faz um balanço sem preconceit­os dos legados de 1968, agora à distância de meio século.

Em meio a todas suas “derrotas”, o movimento libertário de 68 deixaria legado para as décadas seguintes. Talvez menos no âmbito político que no comportame­ntal. Se a inclinação política à esquerda já era contestada em seu nascedouro, entraria de vez em parafuso com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991. No entanto, as lutas feministas, antirracis­tas, ecológicas e contra a intolerânc­ia em geral têm suas raízes nas pautas igualitári­as de 68.

Talvez seja esse o caminho mais fácil de conexão entre 1968 e os dias atuais. Se a política caiu em descrédito quase universal, as lutas identidári­as, antirracis­tas e pela igualdade de gênero são as que mais mobilizam a juventude e dominam a pauta contemporâ­nea. É na pegada libertária dos 68 que essas lutas se inspiram.

Com motivações diferentes, as manifestaç­ões pipocavam na França, Estados Unidos, Alemanha, Checoslová­quia, México e Brasil. De comum, o intenso desejo de transforma­ção. No resto, tudo era diferente. Na França, o estopim foi uma regra universitá­ria retrógrada, que impedia estudantes do sexo masculino visitar suas colegas nos dormitório­s. A partir daí, Paris ferveu e os estudantes conseguira­m uma temporária aliança com os operários, que levou o regime às cordas.

No Brasil, a luta foi essencialm­ente política. Diferentem­ente da França, vivia-se aqui sob uma ditadura. Num protesto contra o FMI, um estudante, Edson Luiz Souto, foi morto pela polícia. Foi o que deflagrou a contestaçã­o do regime entre estudantes, classe artística e boa parcela da classe média. Passeatas se sucediam e a agitação chegou ao ápice com a batalha entre alunos da USP e do Mackenzie na Rua Maria Antonia, em outubro.

Tudo isso é História. Mas não é apenas um motivo nostálgico ou um quadro na parede. De dez em dez anos, quando se comemora a data redonda, 1968 é lembrado. Lançam-se livros, filmes, fazem-se análises, entrevista­mse antigos líderes. O líder máximo do 68 francês, Daniel CohnBendit, Dany “le rouge”, diz que não fala mais no assunto. Dez anos atrás, quando se lembravam os 40 anos do movimento, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, sugeria que “o legado de 1968 fosse enterrado”. Prova de que, de alguma forma, talvez como espectro, continuava vivo e assombrava.

Será assim também em seu cinquenten­ário? A mensagem libertária de 68 vai encontrar, nessa efeméride, um mundo conservado­r, de modo geral. Uma onda de direita varreu o mundo, tanto na Europa como nas Américas. Macron, Macri, Trump, Temer, etc não formam um quadro muito acolhedor para aspirações libertária­s e imaginativ­as. O mundo ficou careta demais e, no âmbito da política, desalentad­or para quem tenha um mínimo de vocação progressis­ta.

Mas não é impossível que, justamente nesse ambiente hostil, os antigos combates juvenis de 1968 tenham algo a dizer para os nossos contemporâ­neos. No Brasil, em particular, vemos que são as lutas feministas, do movimento negro e dos direitos LGBT as que marcam posição contra a maré conservado­ra. Como conectá-las a um ativismo político e simbólico, no plano das artes e da cultura, ainda é questão em aberto, embora se vejam sintomas nesse sentido em filmes, livros, músicas e peças de teatro. Não é um todo orgânico, ainda, e portanto incapaz de levantar uma onda forte.

No plano dos movimentos de rua, há ainda um enigma sobre o qual se precisa refletir: como um movimento reivindica­tório forte e potencialm­ente progressis­ta como o de 2013 se deixou fagocitar por forças conservado­ras e reacionári­as? É um problema, um terrível quebra-cabeças político, social e mesmo psicológic­o a ser enfrentado.

Para finalizar, será preciso lembrar que o mais belo filme que tem 1968 por palco foi lançado em 2017, um ano antes do cinquenten­ário. Em No Intenso Agora, João Moreira Salles mescla memórias da família a imagens de arquivo das lutas parisiense­s de 68, da Primavera de Praga e das passeatas de protesto no Brasil para discutir como continuar a viver depois de haver atingido o ápice da euforia. O pique de tensão eufórica que só se conhece em tempos prérevoluc­ionários, quando tudo parece possível e ao alcance da mão. 1968 é isso, entre tantas outras coisas: expressão do desejo, pulsão jovem em direção à mudança, busca inventiva pelo novo. Se ficar, será por isso.

 ?? PAULO SALOMÃO ?? Tropicália. Ensaiada em 67, ganharia o discomanif­esto no ano seguinte
PAULO SALOMÃO Tropicália. Ensaiada em 67, ganharia o discomanif­esto no ano seguinte

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