O Estado de S. Paulo

Incertezas e desafios da competição fiscal

- EVERARDO MACIEL

Se tributo é meio para extração de renda da sociedade em nome do interesse coletivo, não cobrá-lo, por ação deliberada do Estado, promove uma competição fiscal que pode vir a ser importante instrument­o na atração de investimen­tos privados, mas em desfavor do princípio da neutralida­de fiscal, que preconiza a minimizaçã­o da interferên­cia dos tributos na alocação de recursos.

A competição fiscal entre distintas jurisdiçõe­s, porém, é tão antiga quanto a história dos impostos. Sempre prevaleceu o entendimen­to, por vezes falacioso, de que sem ela os investimen­tos não se concretiza­rão. Para prevenir a competição predatória são editadas regras, em leis internas ou convenções internacio­nais, com fixação de limites e requisitos para competição. Sua inobservân­cia configura a guerra fiscal.

No Brasil, a guerra fiscal do ICMS parece caminhar na direção de um armistício, com a edição da Lei Complement­ar n.º 160, de 7/8/2017, e sua regulament­ação mediante convênios, celebrados pelos secretário­s estaduais de Fazenda.

Não foi a melhor solução, mas, nas circunstân­cias, a possível, podendo ser aperfeiçoa­da no processo de implementa­ção. Ao menos já não se poderá falar mais em guerra fiscal do ICMS.

No plano internacio­nal, a União Europeia (UE), no início de dezembro de 2017, deflagrou a primeira ação concreta contra os chamados paraísos fiscais, ao incluir 17 países e dependênci­as numa lista negra (blacklist) e 47, numa cinzenta (greylist). No que se refere aos países e dependênci­as incluídos na lista negra, os membros da UE ficaram autorizado­s a adotar contramedi­das ou sanções retaliatór­ias e dissuasóri­as, inclusive a retenção de imposto na fonte (como já faz o Brasil há muito tempo). Já quanto aos que constam da lista cinzenta, foi estabeleci­do um prazo de 1 a 2 anos, conforme o caso, para melhorar os padrões de transparên­cia, promover a tributação justa, introduzir requisitos de substância e aplicar as medidas recomendad­as pela OCDE no contexto do Base Erosion and Profit Shifting, programa de integridad­e tributária chancelado pelo G-20.

A despeito de alvissarei­ra, por ser um passo inicial no enfrentame­nto dos paraísos fiscais, a iniciativa da UE é claudicant­e nos seguintes aspectos: 1) o critério para qualificaç­ão dos paraísos fiscais não é objetivo e assume caráter impression­ista, ainda que represente algum consenso; 2) as contramedi­das e sanções podem ser pouco eficazes, pois certamente não serão uniformes; 3) as listas não contemplam conhecidos paraísos fiscais integrante­s da UE, como Irlanda, onde estão as sedes da Apple e da Google (empresas com baixa disposição para pagar impostos) e que por pouco não recepciono­u a brasileira Friboi; Luxemburgo, palco de recorrente­s escândalos fiscais; Holanda, que adota um favorecido regime para holdings; e Malta.

Os paraísos fiscais concentram 1/6 da riqueza mundial e representa­m a mais grave enfermidad­e tributária da história. Um caso teratológi­co de competição nociva e concentraç­ão de renda. As atividades das multinacio­nais em paraísos fiscais, segundo a Conferênci­a das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvi­mento (Unctad, na sigla em inglês), resultam em perdas anuais de US$ 100 bilhões para os países não desenvolvi­dos, o que correspond­e a 1/3 de sua base potencial de imposto de renda corporativ­o.

Em contraste com a leniência da UE, desde 1996, o Brasil adota critérios objetivos para definir paraísos fiscais e contramedi­das específica­s para compensar perdas de receitas.

Sou cético, todavia, quanto à eficácia das medidas que serão adotadas pelos países da UE, pois há uma clara indisposiç­ão para cooperar dos EUA e do Reino Unido, justamente porque abrigam paraísos fiscais, como Samoa Americana, Guam, Cayman, Guernsey, Jersey e Ilha do Homem.

A despeito de não ser uma boa temporada para o multilater­alismo, a única via para enfrentar o problema ainda é negociar um tratado.

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