O que é milagre brasileiro
Sempre procuro me sentar ao lado de José de Souza Martins na Academia Paulista de Letras. Porque é um grande conversador, um daqueles que você ouve longamente e até esquece o café, o suco e os pastéis. No último encontro do ano, no almoço que durou horas no restaurante La Casserole, de Marie France, me esgueirei e consegui ficar ao lado do amigo, autor de O Coração da Pauliceia Ainda Bate, um de meus livros de cabeceira, que me ensina a escrever crônicas e me encanta com histórias desta cidade. À certa altura, Martins virou-se para mim: “Sabe o que é o milagre brasileiro?”. E emendou: “Tomar o café da manhã”.
Peguei a deixa, retruquei: “O milagre brasileiro é ter o café, o leite e o pão”.
E ele: “Também milagre é levantarse de manhã, disposto, sem uma doença, uma dor, um mal-estar, um estresse, uma preocupação”.
Neste momento, Jorge Caldeira chamou Martins, mas continuei sozinho, elucubrando (perdoem-me por tal palavra).
“Milagre é pegar o ônibus de manhã.”
“Milagre é o ônibus passar e, se passar, não chegar superlotado.”
“Milagre é um jovem no metrô estar sentado no banco de gestante e idoso e levantar-se assim que uma grávida entre.”
“Milagre brasileiro é um homem conseguir ficar junto a uma mulher sem encoxá-la, assediá-la.”
“Milagre é a pessoa chegar ao trabalho, sentar-se e cumprir sua jornada, sem ter sido demitida logo de manhã.”
“Milagre é você não ser demitido no final do expediente de sexta-feira, na véspera do feriado, no dia em que sai de férias.” “É também receber seu salário.” “Aliás, milagre mesmo é ter emprego.”
“É também você passear pelo centro ou pela Avenida Paulista e não ter o celular ou a carteira roubados.”
“Milagre é entrar nos Correios e ninguém te oferecer um boleto do Baú da Felicidade.”
“Ou em um banco e o caixa não indagar: não quer fazer um título de capitalização? Preciso fechar uma meta.”
“Ou numa lotérica e a atendente entregar seu jogo sem perguntar: Não vai levar o bolão da Mega?”
“Estacionar seu carro e nenhuma pessoa surgir do nada perguntando: posso vigiar? Só 20 paus.”
“Milagre é o caixa do supermercado não indagar: o senhor não quer arredondar os centavos em prol de uma instituição?”
“Milagre é o telefone tocar e não haver do outro lado uma voz do telemarketing oferecendo fibras óticas ou tantos megabytes.”
“Andar nas ruas e perceber que desde que o gestor Doria entrou pela primeira vez em 12 meses passou um varredor.”
“Milagre é andar pela calçada e completar uma quadra sem tropeçar em um buraco, numa pedra solta, um degrau que não se percebe.”
“Milagre é você pisar na faixa e os carros que viram na esquina o deixarem atravessar a rua.”
“Milagre é você chegar ao estacionamento e perceber que aquele garoto, com um sorriso, permite que você ocupe a sua vaga de idoso.”
“Milagre brasileiro é ninguém tentar furar a fila, invocar prioridades inexistentes, aplicando a lei do mais esperto.”
“Milagre é você estar sentado na sua poltrona do avião e nenhum outro passageiro bater com a mochila na sua cara, no seu ombro, no peito. Ou atropelá-lo no corredor, querendo sair na frente.”
“Milagre é você estar entrando em algum lugar e a pessoa à frente segurar a porta, em lugar de largála em sua cara.”
“Milagre é seu vizinho entrar no elevador e dar-lhe bom dia. Ou uma pessoa pedir algo dizendo por favor e depois acrescentar muito obrigado.”
“Milagre brasileiro dos maiores seria entrarmos em um apartamento e descobrirmos um monte de malas repletas de dinheiro e um cartãozinho avisando: Com o amor de sua mãezinha. Gaste com moderação.”
Bom ano para vocês todos. Se for realmente bom será um imenso milagre brasileiro, como jamais se viu em 517 anos.
É ninguém tentar furar a fila, invocar prioridades inexistentes, aplicando a lei do mais esperto