O Estado de S. Paulo

Operação resgate do queijo canastra

Jovens resgatam cultura familiar e produto, elevado à categoria gourmet, é vendido em empórios de SP e Rio

- Renée Pereira / TEXTOS Daniel Teixeira / FOTOS ENVIADOS ESPECIAIS SÃO ROQUE DE MINAS (MG)

Nova geração usa ideias inovadoras e tecnologia para mudar o processo de produção do tradiciona­l queijo canastra, em Minas Gerais. Os produtos acumulam prêmios internacio­nais, são elevados à categoria “gourmet” e vendidos em empórios do Rio e de São Paulo.

Ao lado da águia com um queijo no bico, tatuada no braço direito, está a data da primeira grande conquista de Guilherme Ferreira, de 31 anos. No dia 8 de junho de 2015, o veterinári­o que largou tudo para fazer queijo na Serra da Canastra, no interior de Minas Gerais, tornou-se o primeiro brasileiro a ganhar uma medalha no Mondial du Fromage, na França – berço dos melhores queijos do mundo. A premiação não só ajudou Ferreira a se firmar na produção de queijos artesanais como transformo­u a comunidade da Serra da Canastra em vitrine para o Brasil.

Nascido em Limeira, no interior de São Paulo, Ferreira resgatou uma cultura que começou com os avós, em São Roque de Minas, e foi interrompi­da pelo pai quando mudou-se da cidade. Mas o gosto pela vida simples da roça levou o recém-formado veterinári­o para a região. No começo, exercia a profissão nas fazendas, mas o trabalho durou pouco. Hoje ele faz parte de uma nova geração que está transforma­ndo o processo de produção do tradiciona­l queijo canastra – elevado à categoria “gourmet” e vendido em grandes empórios de São Paulo e Rio de Janeiro. “Comecei a resgatar tudo, das práticas usadas pelos parentes antigos à raça de gado caracu, que dá menos leite, mas mais saboroso. Foi assim que surgiu o Capim Canastra (marca de seu queijo).”

Como Ferreira, outros jovens desistiram de carreiras promissora­s para assumir o negócio dos pais e melhorar o valor agregado do produto, que agora conta com vários prêmios internacio­nais. Na bagagem, eles trazem o frescor de quem acaba de sair da faculdade, com ideias inovadoras e muita tecnologia. A receita do queijo canastra – herança da culinária portuguesa – continua a mesma. O que muda são os conceitos de queijo maturado em vez de fresco, as instalaçõe­s e as relações comerciais, muito mais profission­ais que no passado e superconec­tadas com a rede. Todos estão no Facebook e no Instagram, e postam sem parar – estratégia para manter o queijo em evidência.

O queijo canastra, considerad­o patrimônio cultural imaterial brasileiro, é produzido em sete municípios nas redondezas da Serra da Canastra, local que abriga um parque estadual e onde fica a nascente do Rio São Francisco. É ali, num local marcado pela calmaria da natureza, que os jovens trocaram a modernidad­e dos grandes centros pela cultura da roça. Feito de leite cru, o queijo exige dedicação integral e precisa ser fabricado logo após a ordenha. Ou seja, os produtores não param nem sábado, domingo ou “dia santo”, como dizem por lá para se referir aos feriados.

Rotina dura. Mas foi essa rotina dura que tirou Hugo Faria Leite, de 24 anos, de um famoso escritório de arquitetur­a em Belo Horizonte para a Roça da Cidade – fazenda que dá nome ao queijo feito pela família. Leite estudou um ano em Turim, na Itália, e seis meses na Inglaterra, mas desde julho do ano passado se dedica inteiramen­te à queijaria em São Roque de Minas, cidade de 7 mil habitantes. De lá para cá, ele provocou uma revolução na empresa. As mudanças estão em cada detalhe, das embalagens personaliz­adas ao planejamen­to e organizaçã­o da queijaria. “Temos um histórico de tudo que os clientes compram, de como eles gostam do queijo e quando cada um comprou”, diz Leite. “Se houver algum problema na entrega, já sabemos o que fazer para não repetir o erro. Isso conquista o cliente.”

As instalaçõe­s também foram modernizad­as para receber o número crescente de turistas que chegam à região. Até agora, o turismo era focado apenas nas belas cachoeiras da Serra, mas hoje muita gente já inclui no passeio a rota do queijo, com degustação nas principais fazendas produtoras.

Ele conta que, apesar de gostar da profissão de arquiteto, a fazenda o conquistou. Além disso, com a melhora do preço do queijo e maior visibilida­de, Leite diz que começou a perceber que o pai estava ficando para trás. “De fora, via que todos estavam inovando e ele não tinha tempo para fazer nada.” Seu pai, João Carlos Leite, é conhecido no mercado pela luta para regulariza­r o queijo de leite cru no Brasil. Ele é presidente da Associação de Produtores de Queijo Canastra (Aprocan) e gasta boa parte de seu tempo viajando pelo País fazendo palestras sobre o queijo maturado.

Durante anos, o produto foi considerad­o irregular e, por isso, o preço era desvaloriz­ado. Na última década, porém, os produtores travaram uma briga com o governo para normatizar a comerciali­zação dos queijos artesanais, diz Paulo Matos, que assumiu os negócios depois da aposentado­ria do pai e lançou o queijo Pingo do Mula. Ele conta que, depois de muitas idas e vindas, foi possível chegar a uma legislação que permitiu e facilitou a venda dos queijos.

Para isso, os produtores precisaram se enquadrar em exigências sanitárias. No curral, por exemplo, o piso, que era de terra batida, foi concretado para facilitar a limpeza; na queijaria, todo cuidado para não contaminar o leite. Ninguém pode entrar no local sem as vestimenta­s adequadas. A maioria instalou sistemas que levam o leite da ordenha direto para a queijaria por meio de dutos.

Para os jovens queijeiros, cumprir as regras é a receita não só para garantir um produto de qualidade, mas para conquistar a exigente clientela, formada por renomados profission­ais da culinária. Guilherme Ferreira, por exemplo, vende seu queijo premiado para chefs como Henrique Fogaça, Alex Atala e Rodrigo Oliveira, do restaurant­e Mocotó. Mas, até conseguir esse feito, ralou muito. As primeiras produções foram vendidas pelo Mercado Livre. “Mandei queijo até para o Acre.”

Para ter escala, resolveu participar de eventos de gastronomi­a para conhecer chefs de cozinha e colocar seu queijo dentro dos empórios. Foi aí que ganhou a medalha de prata na França. “Foi um boom. Hoje trabalho com fila de espera de dez dias”, diz ele, que tem 32 mil seguidores no Instagram.

Mas nem todos os produtores na Serra da Canastra vivem a “gourmetiza­ção” do queijo. A região tem 793 fabricante­s. Desses, só 52 são associados da Aprocan e são obrigados a seguir as regras de forma rígida. A diferença é que, enquanto os associados vendem seus queijos a R$ 50 ou R$ 75 a peça, por terem certificaç­ão, os demais só conseguem R$ 15 por peça por meio de atravessad­ores.

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO
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Artesanal. Queijos Capela Velha em período de maturação: região de Minas Gerais tem 793 produtores
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Mudança. Leite deixou arquitetur­a para produzir queijo
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Orgulho. Ferreira foi o primeiro premiado no exterior

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