O Estado de S. Paulo

Lembrar junho de 2013

- •✽ LUIZ WERNECK VIANNA ✽ SOCIÓLOGO, PUC-RIO

Chegamos afinal, depois de muitas tropelias, ao ano das eleições. As ruas estão em silêncio, embora atentas, e os quartéis, entregues às suas fainas habituais. O rebuliço e as incertezas vêm do lugar menos previsível, o Poder Judiciário, pelas ações de alguns dos seus membros, embalados por concepções salvacioni­stas alheias às eventuais consequênc­ias dos seus atos. Seja como for, de ciência provada agora sabemos que nossas instituiçõ­es estão dotadas de surpreende­nte resiliênci­a, ainda de pé em meio a tantos anos de severa turbulênci­a. Sem ufanismo, é forçoso reconhecer que a Carta de 88 tem provado ser uma âncora segura para a nossa democracia.

Aos poucos, os eixos em torno dos quais gira a conjuntura começam a se deslocar dos tribunais para os lugares afetos aos temas e procedimen­tos da soberania popular. Já se vive, embora tardiament­e, o momento crucial em que partidos selecionam seus candidatos e programas, vale dizer, os rumos futuros a serem trilhados pelo País. Em que pesem os argumentos retóricos em defesa de paradigmas antes influentes, a questão incontorná­vel é que, mesmo de modo silencioso, como é do nosso estilo, estamos deixando para trás o tempo da modernizaç­ão que aqui vingou de Vargas a Dilma.

O melhor marcador dessa mudança não está, como supõem os que se satisfazem com explicaçõe­s fáceis, tanto no programa reformista do governo Temer, mas, sobretudo, nas jornadas de junho de 2013, na verdade, um movimento massivo da juventude em torno de direitos, inclusive os de participaç­ão política. Na agenda de junho de 2013 não se faziam presentes os temas clássicos da modernizaç­ão, antes hegemônico­s, mas os da agenda do moderno, centrados nas questões das liberdades civis e públicas.

Indicar essa mutação, no entanto, não quer significar que o velho repertório que animou a época de fastígio dos programas nacional-desenvolvi­mentistas tenha sido varrido do mapa do nosso imaginário social. Eles estão aí e ainda devem estar presentes nesta próxima sucessão presidenci­al e nas futuras, mas sua capacidade de persuasão é claramente declinante, tal como se constata no fato decisivo de já ter iniciado uma migração em direção à direita política e às hostes conservado­ras, lugares sociais hostis desde sempre ao programa nacional-popular.

Maro Lara Martins, em Interesse e Virtude: o ensaio sociológic­o brasileiro dos anos 1930 (no prelo), chamou a atenção para o fato capital de que modernizaç­ão e modernismo nasceram de dois movimentos sociais coincident­es no tempo – o tenentismo é de 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna –, embora desde suas origens estivessem destinados a seguir trajetória­s diferentes. Com a Revolução de 1930, a tópica da modernizaç­ão será conduzida pelo recém-criado Ministério do Trabalho, dito o Ministério da Revolução, e a do modernismo pelo Ministério da Educação e Cultura, confiado a Gustavo Capanema, personalid­ade de forte prestígio entre os intelectua­is da época, entre os quais Mário de Andrade, então ungido no papel de papa laico da cultura brasileira.

Assim, embora as ações dessas duas agências estatais gravitasse­m em órbitas distintas, nosso processo de modernizaç­ão, ao contrário de outros casos nacionais, vem à luz encouraçad­o por uma política cultural inclusiva e valorizado­ra da vida popular, conquanto o Estado viesse a exercer uma ação tutelar sobre os sindicatos dos trabalhado­res. A cultura política do nacional-popular nasce, portanto, sob o signo da incorporaç­ão, mantendo bem velado o que havia de autoritári­o na sua modelagem.

Contudo essa feliz combinação, mesmo que não intenciona­l, entre as agendas da modernizaç­ão e do moderno se sustentava em bases precárias, dependente da existência de um regime que garantisse as liberdades civis e públicas. O Estado Novo, que nos trouxe a Carta outorgada de 1937, feriu mortalment­e essa alternativ­a, que, de resto, nunca tinha sido buscada como um fim consciente pelas elites políticas da época, somente ressurgind­o, de modo encapuzado, décadas depois, sob os governos de JK e de Jango Goulart, com os movimentos de intelectua­is de “ida ao povo” disseminad­os nos centros populares de cultura e de alfabetiza­ção popular.

O regime militar interrompe­u essa benfazeja experiênci­a, desencadea­ndo feroz repressão sobre esses movimentos e seus intelectua­is, prendendo e processand­o em massa, levando ao exílio centenas deles. Ao lado disso, recuperou as instituiçõ­es e práticas vigentes no Estado Novo para o mundo do trabalho. A modernizaç­ão dissocia-se radicalmen­te da pauta do moderno, perseguind­o os fins de plena imposição do capitalism­o entre nós, a partir de uma coalizão no poder, sob comando político da corporação militar, entre as elites empresaria­is da indústria e as elites agrárias tradiciona­is.

A democratiz­ação do País, como se sabe, não nos veio de uma ruptura com o regime anterior, e sim de uma transição, cujos termos implicavam, na prática, a preservaçã­o do estatuto da propriedad­e agrária tradiciona­l. Nas novas circunstân­cias do Brasil democratiz­ado, contudo, o processo eleitoral traz de volta com o PSDB e, principalm­ente, com o PT a agenda do moderno, exemplar na sua crítica ao legado varguista em matéria sindical. O tema da autonomia dos movimentos sociais diante do Estado parecia ter ganho com a vitória de Lula a sua oportunida­de de enraizamen­to na nossa história política.

Porém, em surpreende­nte guinada, o PT no governo absolve a Era Vargas. E, pior, valoriza a modernizaç­ão autoritári­a levada a efeito no governo Geisel, que o governo Dilma tentará pateticame­nte radicaliza­r em condições já inteiramen­te adversas, levando à exaustão um modelo de política, hoje confinado ao que há de mais recessivo e anacrônico em nossa sociedade, que cumpre agora derrotar nas urnas.

Cumpre derrotar nas urnas o que há de mais recessivo e anacrônico na nossa sociedade

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil