França reedita obra antissemita de escritor
Textos da 2ª Guerra simpáticos ao nazismo revivem debate sobre liberdade de expressão
A reedição dos textos antissemitas escritos pelo célebre escritor Louis-Ferdinand Céline, entre 1937 e 1941, antes e durante a 2.ª Guerra, criou celeuma na França e pode levar o governo a intervir no mercado editorial. A decisão de republicar três livros proscritos pelo próprio autor, por seu conteúdo simpático ao nazismo, foi tomada pela editora Gallimard, uma das maiores e mais prestigiosas da Europa.
Em resposta, a direção da empresa foi convocada pelo governo francês a dar explicações, e uma discussão foi aberta no meio intelectual. A obra em questão, Ecrits Polémiques
(Escritos Polêmicos, em tradução livre), reunirá os três textos mais abertamente em favor do nazismo escritos pelo autor.
São eles Bagatelles pour un massacre (1937), L’Ecole des cadavres (1938) e Les Beaux Draps
(1941), os livros malditos do autor do clássico Viagem ao Fim da Noite (1932). Considerado um dos intelectuais mais brilhantes da história da literatura francesa, Céline é também um dos autores mais contestados por sua adesão às ideias da supremacia da raça ariana sobre todas as demais. Nos livros, artigos e entrevistas em que abordou o tema, o escritor revelou sua admiração pela Alemanha nazista, comandada por Adolf Hitler.
Colaboracionismo. Além de aderir, Céline passou a propagar ideias fascistas a partir de 1924, assim como repetir ataques duros ao racionalismo, ao marxismo, ao liberalismo, à democracia, ao materialismo, ao feminismo e ao hedonismo. Seus escritos também atacavam comunistas, socialistas, católicos, maçons, negros, mulheres, homossexuais, ingleses, americanos, árabes, franceses e servem hoje como combustível “intelectual” para grupos de extrema direita de perfil antissemita, negacionista e racista na França.
O livro Bagatelles pour un massacre, em sua edição publicada pela editora Denoël, em 1937, e hoje disponível em PDF na internet, de 239 páginas, traz 395 referências à palavra “judeus” espalhadas em 173 páginas. E as citações são de desprezo e de ódio.
Ainda em vida, Céline proibiu a reedição dos livros no pósguerra, de seu exílio na Dinamarca, já que na França ele respondia a processo por traição. Por seu conteúdo, que envolveria crimes de incitação ao ódio, o livro acabou virtualmente proscrito das livrarias francesas desde a libertação do país, em 1944.
Suas cópias, raras, são comercializadas a preços elevados no mercado paralelo e uma edição em francês impressa em Quebec, no Canadá, em 2012, é com frequência importada. Essa versão foi publicada pela Editions 8, uma editora canadense pertencente ao professor de literatura Rémi Ferland, um simpatizante de Marine Le Pen, líder da extrema direita na França.
Até aqui, sua viúva, Lucette Destouches, hoje com 105 anos, respeitava a vontade do marido e impedia a republicação das obras, valendo-se da propriedade intelectual sobre os trabalhos, que lhe pertencem até 2031 – quando se completarão 70 anos da morte do autor (ele morreu em 1961 aos 67 anos).
Doente, com poucos recursos financeiros e necessitando de assistência médica 24 horas por dia, a viúva aceitou a reedição dos trabalhos.
O resultado será publicado em maio pela Gallimard. Ainda que a editora francesa não se manifeste sobre o tema, seria a mesma edição canadense, mas com prefácio do jornalista e escritor Pierre Assouline, judeu sefardita – ou seja, originário da Península Ibérica – e especialista na obra do autor. Contatado pelo Estado, Assouline não respondeu aos pedidos de entrevista sobre a apresentação da obra.
Ressalvas. A republicação de livros malditos como Mein Kampf, de Hitler, na Alemanha, ou ainda dos panfletos antissemitas de outro escritor francês, Lucien Rebatter, na França, vem causando discussão na Europa nos últimos anos.
Para contornar o problema, suas edições vêm acompanhadas da contextualização histórica e de reflexões sobre a irracionalidade das teses dos autores. Ainda que não se tenha detalhes sobre a versão a ser publicada pela Gallimard, espera-se o mesmo da editora francesa sobre Céline, embora a comunidade judaica e intelectuais franceses tenham dúvidas a respeito.
Alarmadas, organizações como o Conselho Representativo das Instituições Judaicas da França (CRIF) denunciaram o caráter de ódio dos escritos de Céline e lamentaram a publicação de seus textos. Dois especialistas do conselho científico do CRIF, Dominique Schapper e Pierre-André Taguieff, solicitaram em carta aberta um contato entre o Poder Executivo e a editora.
Para tentar controlar a discussão e reduzir as dúvidas sobre a republicação, o delegado interministerial da luta contra o racismo, antissemitismo e ódio anti-LGBT, Frédéric Potier, membro do governo do presidente Emmanuel Macron, solicitou “garantias” à editora e uma carta oficial enviada à Gallimard.
“Em um contexto no qual o flagelo do antissemitismo deve ser mais do que nunca combatido com força, a modalidade da publicação ao grande público dos escritos deve ser pensada com cuidado”, ponderou Potier, na correspondência revelada pela revista L’Express.
O delegado solicita ao editor que a crítica que acompanhará o livro venha acompanhada do contexto histórico e ideológico da produção da obra, assim como o esclarecimento do viés do autor e dos erros factuais contidos, “que são determinantes”. “Não se trata, de forma alguma, de me colocar como censor, mas apenas de assegurar que essa edição oferecerá todas as garantias necessárias”, explicou Potier à L’Express.