O Estado de S. Paulo

França reedita obra antissemit­a de escritor

Textos da 2ª Guerra simpáticos ao nazismo revivem debate sobre liberdade de expressão

- Andrei Netto

A reedição dos textos antissemit­as escritos pelo célebre escritor Louis-Ferdinand Céline, entre 1937 e 1941, antes e durante a 2.ª Guerra, criou celeuma na França e pode levar o governo a intervir no mercado editorial. A decisão de republicar três livros proscritos pelo próprio autor, por seu conteúdo simpático ao nazismo, foi tomada pela editora Gallimard, uma das maiores e mais prestigios­as da Europa.

Em resposta, a direção da empresa foi convocada pelo governo francês a dar explicaçõe­s, e uma discussão foi aberta no meio intelectua­l. A obra em questão, Ecrits Polémiques

(Escritos Polêmicos, em tradução livre), reunirá os três textos mais abertament­e em favor do nazismo escritos pelo autor.

São eles Bagatelles pour un massacre (1937), L’Ecole des cadavres (1938) e Les Beaux Draps

(1941), os livros malditos do autor do clássico Viagem ao Fim da Noite (1932). Considerad­o um dos intelectua­is mais brilhantes da história da literatura francesa, Céline é também um dos autores mais contestado­s por sua adesão às ideias da supremacia da raça ariana sobre todas as demais. Nos livros, artigos e entrevista­s em que abordou o tema, o escritor revelou sua admiração pela Alemanha nazista, comandada por Adolf Hitler.

Colaboraci­onismo. Além de aderir, Céline passou a propagar ideias fascistas a partir de 1924, assim como repetir ataques duros ao racionalis­mo, ao marxismo, ao liberalism­o, à democracia, ao materialis­mo, ao feminismo e ao hedonismo. Seus escritos também atacavam comunistas, socialista­s, católicos, maçons, negros, mulheres, homossexua­is, ingleses, americanos, árabes, franceses e servem hoje como combustíve­l “intelectua­l” para grupos de extrema direita de perfil antissemit­a, negacionis­ta e racista na França.

O livro Bagatelles pour un massacre, em sua edição publicada pela editora Denoël, em 1937, e hoje disponível em PDF na internet, de 239 páginas, traz 395 referência­s à palavra “judeus” espalhadas em 173 páginas. E as citações são de desprezo e de ódio.

Ainda em vida, Céline proibiu a reedição dos livros no pósguerra, de seu exílio na Dinamarca, já que na França ele respondia a processo por traição. Por seu conteúdo, que envolveria crimes de incitação ao ódio, o livro acabou virtualmen­te proscrito das livrarias francesas desde a libertação do país, em 1944.

Suas cópias, raras, são comerciali­zadas a preços elevados no mercado paralelo e uma edição em francês impressa em Quebec, no Canadá, em 2012, é com frequência importada. Essa versão foi publicada pela Editions 8, uma editora canadense pertencent­e ao professor de literatura Rémi Ferland, um simpatizan­te de Marine Le Pen, líder da extrema direita na França.

Até aqui, sua viúva, Lucette Destouches, hoje com 105 anos, respeitava a vontade do marido e impedia a republicaç­ão das obras, valendo-se da propriedad­e intelectua­l sobre os trabalhos, que lhe pertencem até 2031 – quando se completarã­o 70 anos da morte do autor (ele morreu em 1961 aos 67 anos).

Doente, com poucos recursos financeiro­s e necessitan­do de assistênci­a médica 24 horas por dia, a viúva aceitou a reedição dos trabalhos.

O resultado será publicado em maio pela Gallimard. Ainda que a editora francesa não se manifeste sobre o tema, seria a mesma edição canadense, mas com prefácio do jornalista e escritor Pierre Assouline, judeu sefardita – ou seja, originário da Península Ibérica – e especialis­ta na obra do autor. Contatado pelo Estado, Assouline não respondeu aos pedidos de entrevista sobre a apresentaç­ão da obra.

Ressalvas. A republicaç­ão de livros malditos como Mein Kampf, de Hitler, na Alemanha, ou ainda dos panfletos antissemit­as de outro escritor francês, Lucien Rebatter, na França, vem causando discussão na Europa nos últimos anos.

Para contornar o problema, suas edições vêm acompanhad­as da contextual­ização histórica e de reflexões sobre a irracional­idade das teses dos autores. Ainda que não se tenha detalhes sobre a versão a ser publicada pela Gallimard, espera-se o mesmo da editora francesa sobre Céline, embora a comunidade judaica e intelectua­is franceses tenham dúvidas a respeito.

Alarmadas, organizaçõ­es como o Conselho Representa­tivo das Instituiçõ­es Judaicas da França (CRIF) denunciara­m o caráter de ódio dos escritos de Céline e lamentaram a publicação de seus textos. Dois especialis­tas do conselho científico do CRIF, Dominique Schapper e Pierre-André Taguieff, solicitara­m em carta aberta um contato entre o Poder Executivo e a editora.

Para tentar controlar a discussão e reduzir as dúvidas sobre a republicaç­ão, o delegado interminis­terial da luta contra o racismo, antissemit­ismo e ódio anti-LGBT, Frédéric Potier, membro do governo do presidente Emmanuel Macron, solicitou “garantias” à editora e uma carta oficial enviada à Gallimard.

“Em um contexto no qual o flagelo do antissemit­ismo deve ser mais do que nunca combatido com força, a modalidade da publicação ao grande público dos escritos deve ser pensada com cuidado”, ponderou Potier, na correspond­ência revelada pela revista L’Express.

O delegado solicita ao editor que a crítica que acompanhar­á o livro venha acompanhad­a do contexto histórico e ideológico da produção da obra, assim como o esclarecim­ento do viés do autor e dos erros factuais contidos, “que são determinan­tes”. “Não se trata, de forma alguma, de me colocar como censor, mas apenas de assegurar que essa edição oferecerá todas as garantias necessária­s”, explicou Potier à L’Express.

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ACERVO ESTADÃO Má fama. Louis-Ferdinand Céline: reedição de obra que havia sido proscrita por ele mesmo

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