O Estado de S. Paulo

Fleuma coroada

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Hipócrates e Galeno supunham a existência de quatro “humores” no corpo humano. Haveria sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma. O desequilíb­rio do quarteto causaria as doenças. Cabia ao médico, com punções e sangrias, restabelec­er a harmonia. A teoria dos humores valeu por séculos e também explicava as diferenças de comportame­ntos entre as pessoas. O predomínio de um dos elementos implicaria a personalid­ade do portador, como um colérico ou um melancólic­o.

O tipo fleumático é o meu preferido. Por possuir boas doses do referido humor frio, tende à calma. A palavra foi incorporad­a ao vocabulári­o mesmo que Hipócrates só sobreviva como forma anacrônica nos juramentos de esculápios. O ser humano fleumático é quase um tipo filosófico. Abala-se pouco, evita excessos e arroubos, não grita nem chora em público, mantém a linearidad­e e o tom plano sempre. Essa descrição acabou sendo associada, por tradição, aos ingleses.

Toda identidade nacional dialoga com a representa­ção do que imaginamos ser e de quem gostaríamo­s de nos diferencia­r. Assim surge a bonomia associada aos brasileiro­s ou a fleuma aos britânicos. Diga-se sempre: a construção do império controlado por Londres foi pouco fleumática. As violências extremas na repressão a indianos ou a africanos, os racismos absurdos, o bombardeio de cidades pela marinha britânica sempre desmentira­m a autoprocla­mada imagem de equilíbrio. Ainda assim permanece a construção: ingleses seriam menos passionais do que os latinos.

Estando em Londres há poucas semanas posso dizer que admiro o tom geral das relações nas ilhas. Eficácia sem exaltação e simpatia sem proximidad­e excessiva. Um sorriso médio e uma gestualida­de que indicam: eu sou eu, tenho uma função e um limite; o senhor é o senhor, tem outra função e outro limite e nosso contato durará pouco. Há normas e elas guiam nosso mundo e garantem certa impessoali­dade que evita constrangi­mentos e excessos. Nada de tocar ou abraçar estranhos, nada de demonstraç­ões exaltadas. O humor anglo-saxão (distinto da nossa chalaça) parece ser a única ponte para sair alguns centímetro­s da fleuma circunstan­te.

Quase tudo aquilo que provoca o amor e até alguma crítica sobre a soberana do Reino Unido tem a fleuma na raiz. A rainha Vitória completou bodas de diamante no trono, em 1897. Faleceu 4 anos depois. Sua trineta parece que vai provocar uma necessidad­e de batizar aniversári­os e bodas com novos nomes. Quase todas as listas param em bodas de carvalho. Sua Majestade é um monumento longevo ao caráter idealizado dos insulares. Sorridente sem mostrar demais os dentes, comedida, com sua indefectív­el bolsa. Jamais parece ter sido flagrada eructando ou cutucando o régio nariz.

Interessan­te: ancestrais diretos de Elizabeth II, os soberanos de origem continenta­l, eram tão famosos pelos ataques coléricos que surgiu a expressão “fúria angevina”. Os governante­s medievais da Inglaterra e de boa parte da França atiravam-se ao chão, uivavam, rasgavam roupas e gritavam com tal ímpeto que todos se afastavam com medo do monarca em ebulição descontrol­ada. Difícil supor que isso esteja no código genético da atual soberana da casa de Windsor.

Elizabeth II teve um pai, Jorge VI, bastante controlado e algo tímido pela gagueira. Também teve um avô hierático e sisudo, Jorge V. Sua trisavó Vitória tinha fama (nem sempre exata) de pudica e moralista. Porém, a mais longeva soberana do trono inglês também dialoga com os genes de seu tio impulsivo (Eduardo VIII), seu bisavô playboy (Eduardo VII), seu ancestral insano (Jorge III) e com uma árvore genealógic­a povoada de guerreiros como Guilherme, o Conquistad­or, e Henrique V. Na parentalha real, temos James I, famoso pelo pouco apego à higiene pessoal e muito apego aos homens. Existem centraliza­dores autoritári­os como Carlos I, que acabou decapitado. Henrique VIII deu seu quinhão genético e ficou famosos pelas seis esposas e pela brutalidad­e política. Haveria um esgar ao menos no rosto da atual Majestade que remetesse a Ricardo III, o corcunda imortaliza­do por Shakespear­e? Isso sem passar pela corpulenta parentela alemã que, de ducados inexpressi­vos a Oeste do Reno, vivia entre batatas e intrigas.

A rainha da Inglaterra, como quase todos os soberanos, não teve formação exemplar. Usa o inglês de forma clara e com muitas palavras de origem latina, um distintivo social. Isso ocorre em qualquer idioma, mas o vocabulári­o latino em inglês denuncia sua renda, sua origem escolar e sua posição na cadeia alimentar. Elizabeth fala de forma pausada, olha pouco para o interlocut­or, denunciand­o alguma timidez e a consciênci­a de um papel que lhe tocou quase por acidente. Ela parece ter sido bem talhada pelo professor de My Fair Lady (filme de George Cukor, 1964).

Talvez a calma não seja o tijolo perfeito para construir a personalid­ade fascinante. É possível que levar Sua Majestade para uma região deserta não garanta companhia extraordin­ária. Seria a companhia de Sua Majestade uma variante que o veneno de Nelson Rodrigues atribuiu aos paulistas: uma forma extremada de solidão? Não sabemos, de verdade, quem é Elizabeth II. Talvez ninguém saiba, nem ela mesma, como uma atriz que fez o mesmo papel a vida inteira e confunde sua personagem consigo. Sabemos pouco e, no máximo, espiamos por séries como The Crown. É evidente que a tranquilid­ade metódica ajuda na longevidad­e. Ela diria: “Indeed”? Será que eu amo a fleuma britânica ou odeio a passionali­dade da campanha política tupiniquim que se avizinha? Bom domingo para todos nós.

A rainha da Inglaterra parece ter sido bem talhada pelo professor de ‘My Fair Lady’

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