O Estado de S. Paulo

Reunião de condomínio

- RUTH MANUS E-MAIL: RUTH.MANUS@ESTADAO.COM RUTH MANUS ESCREVE AOS DOMINGOS

No edifício de quase 120 anos as reparações necessária­s eram muitas: as escadas gastas, a pintura das paredes, as lixeiras que atrapalhav­am a passagem, as luzes que desobedeci­am às ordens do interrupto­r, as caixas de correio enferrujad­as e o seguro contra incêndios que já estava por vencer. A síndica agendou a urgente reunião para as 19 horas de uma terça-feira de outono.

O jovem casal que se mudara recentemen­te para o terceiro direito do edifício lisboeta não conhecia nenhum vizinho, exceto Dona Antónia, que morava no apartament­o da frente. Estavam curiosos com os moradores das seis outras frações do prédio, bem como estavam sentindo a urgência na execução das melhorias.

Souberam que a reunião aconteceri­a no apartament­o do Sr. Fernando e para lá se dirigiram, com sete minutos de atraso, em virtude do chá que demorou muito para esfriar. Ao chegarem, depararam-se com uma cena e um elenco dignos das melhores comédias francesas.

A sala do apartament­o, lotada de móveis de madeira escura, estava tomada por pilhas e pilhas de revistas, livros, caixas e fitas VHS. O espaço para circulação era quase insuficien­te para dois adultos de porte médio. No fundo da sala, uma grande mesa oval, ao redor da qual todos os vizinhos já haviam se acomodado.

Após as apresentaç­ões, descobrira­m serem os seguintes os moradores dos oito apartament­os: no térreo, de um lado, Dona Filomena, cabelo lilás e quase 90 anos, do outro lado, Anis, o saxofonist­a argelino de meia-idade. No primeiro andar direito, local da reunião, Sr. Fernando e a esposa, Dona Gabriela, ambos com seus mais de 80, e no esquerdo Dona Anabela, solteira, nascida na grande Samora Correia, cuja capacidade auditiva rondava os 7%. No segundo andar direito, vivia um outro casal jovem: Tomás e Gonçalo. Apenas Gonçalo frequentav­a a reunião para não escandaliz­ar os vizinhos. No esquerdo, Dona Dulce, viúva de um político famoso da região, operada da catarata naquela semana. E, por fim, no terceiro, eles mesmos e Dona Antónia, cuja história misteriosa envolvia o abandono de um convento aos 20 e poucos anos.

Sentaram-se, timidament­e sorridente­s, apresentar­am-se e receberam alguns olhares simpáticos das velhinhas. Iniciaram-se, então, os debates. Dona Filomena e Dona Anabela praticamen­te não diziam nada, além de curtas reclamaçõe­s sobre os preços de qualquer coisa. Dona Gabriela – a temida síndica – estava contra tudo e contra todos, especialme­nte contra seu marido, contra o qual impingia constantem­ente a frase “Oh pá, Fernando, só sabes dizer parvoíces?”. Dona Antónia e Dona Dulce eram as mais bem-humoradas, apesar da catarata e do convento, e pareciam interessad­as somente no evento social e não nas questões sobre o prédio. Anis, com seu sotaque francês, tentava opinar sobre “ô segurrro e a pinturrra”. Toda fonte de sensatez naquele cenário vinha de Gonçalo, com sua educação e delicadeza ímpares e com sua camisa e paletó irretocáve­is.

O jovem casal falou pouco, em meio àquela overdose de informação. Tentou concordar com tudo que Gonçalo dizia, valorizand­o ao mesmo tempo as frases tumultuada­s de Anis, bem como os protestos financeiro­s de Dona Filomena e Dona Anabela, sem nunca se indispor com Dona Gabriela, a déspota, dando algum apoio moral às frases inacabadas do Sr. Fernando e respondend­o às pertinente­s questões de Dona Antónia e Dona Dulce sobre quando pretendiam ter bebês e se gostavam de arroz doce.

No final, ajudaram Dona Dulce, que não enxergava, a assinar a ata, e acompanhar­am as outras senhoras até suas portas. Dona Anabela chamou-os de Carlota e Manoel, eles não sabem bem por quê. Entraram em casa, abriram uma garrafa de vinho e disseram “talvez o prédio não esteja assim tão mal, né? As obras podem esperar mais um pouco”. Certamente. Acho ótimo.

No 3.º morava D. Antónia, cuja história misteriosa envolvia o abandono de um convento

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