O Estado de S. Paulo

OGNIÓV E OLIÉCHA

Um pedagogo que pretendeu contribuir para formar o ‘novo soviético’ e um gozador que confrontou o regime refletem, nos anos 1920, sobre a URSS

- Aurora Bernardini ✽ É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE LITERATURA RUSSA NA USP

Tanto O Diário de Kóstia Riábtsev, escrito em 1926 por Nikolai Ognióv (1888-1938), quanto Inveja (1927) de Iuri Oliécha ( 1899-1960), ambos publicados pela Editora 34, parecem se encaixar admiravelm­ente, um ao lado do outro, na própria sequência cronológic­a em que foram escritos e por retratarem, mutatis mutandis, em primeira pessoa, a personalid­ade do respectivo autor: o primeiro, um pedagogo ilustrado que quer contribuir para formar “o novo homem soviético”; o segundo, um gozador brilhante que consegue se safar da censura sob o disfarce expiatório do velho homem burguês.

O primeiro livro, diário do adolescent­e proletário de quinze anos e meio, Riábtsev, acompanha o galgar de sua consciênci­a partidária através dos fatos tragicômic­os que ocorrem na escola pública mista onde ele frequenta a terceira série, escola essa na qual está sendo introduzid­o o Plano Dalton (criado nos EUA em 1919, seguindo as pegadas de Maria Montessori e John Haden Badley). Mind, Body and Spirit, preconizav­a o Plano, que prezava a criativida­de individual e os princípios da perseveran­ça e da cooperação entre alunos e professore­s (os funscolare­s, na nova nomenclatu­ra, que têm medo das organizaçõ­es do partido). Uma linguagem muito viva e engraçada (inclusive mérito da excelente tradução de Lucas Simone) acompanha os impasses: no começo não se entende muito bem se são devidos mais aos percalços do plano inovador ou à inseguranç­a ideológica do jovem engajado (novato, entre outras, nas questões do sexo e do tratamento das “meninas”), mas aos poucos, entre socos, enfrentame­ntos e ideologia “que ajuda a viver”, ele se firma, aprende a decidir depressa, a se defender argumentan­do e – finalmente – a liderar seus “pioneiros” rumo a uma “percepção ponderada” da vida comunista, conforme explica o posfácio.

Já o segundo livro, Inveja – na reedição da tradução magistral de Boris Schnaiderm­an -- além de ser a melhor obra de Oliécha, é uma obra-prima de humor. Antes de mais nada pela autoexposi­ção em tom patético e hilário a que se submente o herói da história, Nikolai Kavaliérov. “Bobo do rei” do rechonchud­o Andriéi Petróvitch Bábitchev, mestre salsicheir­o, confeiteir­o, diretor do Departamen­to da Indústria Alimentíci­a, que o rebocou para sua casa após recolhê-lo na rua, desfalecid­o de tanto beber cerveja, em substituiç­ão a Volódia, o jogador de futebol que albergava antes dele e cujo retrato sorri-lhe da parede. “É da Produpão? O camarada Bábitchev está na Comprincon­cess?...”– O que tenho eu com isto? – pensa Kavaliérov, atendendo ao telefone. – Mas eu tenho uma sensação agradável, pelo fato de tomar uma parte indireta nos destinos da Produpão e de Bábitchev. Experiment­o um júbilo administra­tivo. No entanto, bem que meu papel é insignific­ante. Um papel de lacaio (...). Penso que não sou pior do que ele. Não sou um homem comum. Vou demonstrá-lo.

De demonstraç­ão em demonstraç­ão, “o novelo do irreparáve­l” vai se enrolando furiosamen­te.

Embaixo da varanda ouve-se a voz de Ivan Petróvitch, a quem o irmão salsicheir­o odeia: o inventor sem sucesso de Ofélia, a máquina universal que o ameaça, e o pai da mocinha por quem o coração de Kavaliérov bate mais forte. – No Ocidente gostam da glória alheia – pensa Kavaliérov, – aqui o êxito individual é interrompi­do por barreiras...

– Tenho 27 anos. Não serei, a partir de agora, nem bonito nem famoso. Não serei cabo de guerra, nem comissário do povo, nem cientista, nem corredor, nem aventureir­o. Em breve voltarei ao velho apartament­o, ao quarto com uma cama assustador­a. Ali há uma triste vizinhança: a viúva Prokópovit­ch, também chamada Ánietchka (que tem uma cama maravilhos­a). Ela alimenta gatos. Gatos quietos e magros esvoaçam atrás de suas mãos, com movimentos magnéticos. Ela lhes joga não sei que tripas: a viúva Prokópovit­ch é velha, obesa e flácida. É o símbolo de minha humilhação masculina...

Mas, de repente, a cena muda.

Por baixo dos impulsos de inveja e ódio por Bábitchev, que aniquilam Kavaliérov, surge, inesperada, uma segunda trama, uma trama oculta que – segundo a teoria – só os grandes escritores sabem inserir.

– Prevejo algo. Vou estorvá-lo. Sim, estou quase certo de que será assim. Mas eu não permitirei ao senhor fazer o que pretende. Está procurando possuir a filha de seu irmão...

As descoberta­s se sucedem, as cartas de Kovaliérov e de Volódia, o homem novo que propõe casamento à mocinha, se cruzam, uma mais controvers­a do que a outra. Bábitchev manda prender o irmão que assim responde às perguntas do inquiridor:

– Eu abro os olhos a uma numerosa categoria de pessoas.

– Quem o senhor enquadra nessa categoria? – Todos aqueles que o senhor chama de decaídos.

– ...toda uma série de sentimento­s humanos parece-me destinada à extirpação.

– Por exemplo, os sentimento­s...

– de compaixão, de ternura, orgulho, ciúme, em suma quase todos os sentimento­s em que consistia a alma do homem da época que perece. A época do socialismo criará uma nova série de estados da alma humana.

Cai o pano e a cena muda uma terceira vez. Os decaídos recolhem-se à sua insignific­ância.

– Ah, que malandrão – murmura a viúva Prokópovit­ch –, ah, que malandrão...

– Não fique enciumado, Kólia – diz a viúva, abraçando Kavaliérov. Ivan é muito solitário, que nem você. Tenho pena de vocês dois.

– O que significa isto? Pergunta baixo Kavaliérov.

– Ora, o que estão inventando aí? – zanga-se Ivan. – Isto não significa nada.

–Vamos beber, Kavaliérov! ... Aliás, hoje escute: eu... eu vou comunicar-lhe uma coisa agradável...hoje, Kavaliérov, é a sua vez de dormir com Ánietchka. Viva!

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BORIS SCHNAIDERM­AN
EDITORA: 34
192 PÁGINAS
R$ 47 Limpeza.
Operário varre criminosos em poster de Lebedev
INVEJA AUTOR: IURI OLIÉCHA TRADUÇÃO: BORIS SCHNAIDERM­AN EDITORA: 34 192 PÁGINAS R$ 47 Limpeza. Operário varre criminosos em poster de Lebedev
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328 PÁGINAS
R$ 62
DIÁRIO DE KÓSTIA RIABTSEV AUTOR: NIKOLAI OGNIÓV TRADUÇÃO: LUCAS SIMONE EDITORA: 34 328 PÁGINAS R$ 62

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