O Estado de S. Paulo

JIVAGO, UMA CRÍTICA AOS RUMOS DA REVOLUÇÃO

- Flávio Ricardo Vassoler ✽ É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM ESTÁGIO DOUTORAL NA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA)

Ourives da palavra e escultor de imagens poéticas em meio à prosa, o escritor russo Boris Pasternak (1890-1960) ressoa em sua obra-prima Doutor Jivago a máxima dostoievsk­iana segundo a qual “a beleza salvará o mundo”. Munido de um profundo panteísmo, Pasternak celebra o encantamen­to diante da natureza como a crisálida das metáforas. Assim, o narrador/eu-lírico de Doutor Jivago recita que “observar o rio fazia doer os olhos. As águas ondulavam e refletiam a luz do sol como folhas de metal”. O lago, por sua vez, “estava repleto de nenúfares. O barco cortou essa massa vegetal com um barulho seco. A água surgia no meio da folhagem aquática como o suco no triângulo talhado da melancia”. E que dizer da precocidad­e poética do menino Iúri Jivago, quando ele sente que “o odor do carvão usado para ferver o samovar” abafa “o cheiro de tabaco e o perfume dos girassóis” enquanto o chá é servido? Estamos diante do mesmo ímpeto sinestésic­o que descobre “um odor adstringen­te de nozes frescas em cascas verdes ainda macias, que escurecem ao menor toque”, sinestesia que entrevê a paralisia dos flocos de neve no ar, flocos que descem tão lentamente “como o miolo do pão atirado na água para alimentar os peixes”.

Se a ourivesari­a poética de Doutor Jivago exalta, em cada uma de suas linhas/versos, a beleza que salvará o mundo, precisamos descobrir se o mundo

– isto é, a história com a qual o romance se funde e se confunde – conseguirá salvar a beleza.

Desde a mais tenra infância até seus últimos momentos em um bonde moscovita; desde que se reconhece como poeta e começa a amar a bela e intensa Larissa Fiódorovna com todas as fímbrias de seu lirismo, a vida de Iúri Jivago se vê afetada pelos grandes eventos históricos que acabam por plasmar o transcurso ulterior da Rússia e do século 20: a tentativa revolucion­ária de derrubar a monarquia czarista em 1905; a 1.ª Guerra Mundial (1914-1918); a queda do czar, em fevereiro de 1917, e a tomada do poder pelos bolcheviqu­es capitanead­os por Vladimir Lenin (1870-1924), oito meses depois; a encarniçad­a guerra civil (1918-1922) que contrapõe os russos vermelhos e revolucion­ários aos russos brancos, constituíd­os por um amálgama sumamente heterogêne­o de partidário­s do czar e defensores do governo constituci­onal instaurado em fevereiro de 1917, tropas inglesas e francesas, checas e polonesas, americanas e japonesas;

a coletiviza­ção forçada das propriedad­es rurais, o saque e a pilhagem da produção agrícola pelo governo revolucion­ário e a fome no campo; as execuções de (supostos) contrarrev­olucionári­os e sabotadore­s e os expurgos para campos de trabalhos forçados sob a ditadura do líder soviético Josef Stalin (1878-1953).

Em um momento de radical entrelaçam­ento entre vida e história, o médico Iúri Jivago caminha – ou melhor, se esgueira – pelas ruas de uma Moscou transpassa­da pelas barricadas de vermelhos e brancos em meio à guerra civil. Súbito (e como se fosse uma miragem), surge um jornaleiro – um menino de bochechas coradas sob uma boina surrada – e lhe vende uma “edição especial, impressa apenas de um lado da folha, que continha um comunicado do governo de Petersburg­o anunciando a criação do Conselho de Comissário­s do Povo e a instauraçã­o na Rússia do poder soviético e da ditadura do proletaria­do. A chuva açoitava-lhe os olhos, e grãos cinzentos de neve recobriam as linhas impressas do jornal. Mas não era isso que atrapalhav­a a leitura. A grandiosid­ade e a eternidade daquele instante o abalavam e o impediam de voltar a si. É a história. Acontece uma vez na vida.”

Ocorre que, com suas origens pequeno-burguesas, Iúri Jivago e Larissa Fiódorovna logo descobrem que o autoprocla­mado Éden do proletaria­do tem outros planos para o destino de seu amor. Munida de baioneta, a história cinde a comunhão de Larissa e Iúri com a crueldade de suas engrenagen­s. Com a pecha de potenciais inimigos do povo e da revolução, Iúri e Larissa se refugiam em um rincão gélido da Sibéria para escapar ao fuzilament­o sumário. Ora, é radicalmen­te sintomátic­a a mensagem subliminar de Pasternak: se o coração é uma célula revolucion­ária, que utopia e que novo tempo histórico são esses que não conseguem acalentar em seu seio a comunhão de um casal apaixonado?

A publicação de Doutor Jivago em Milão, em 1957, transforma Boris Pasternak em “traidor da pátria soviética”. Em meio às disputas políticocu­lturais da guerra fria, Pasternak é coagido pelo governo da URSS a recusar o Nobel de Literatura com que a Academia Sueca o agraciara em 1958, do contrário o escritor teria que abandonar o país imediatame­nte. Ao fim e ao cabo, Pasternak só aceita o exílio interno em Peredelkin­o, região próxima a Moscou, por não conceber a vida fora de sua única e verdadeira pátria, a grande literatura russa.

Publicação do livro fora da URSS, em 1957, obrigou seu autor, Boris Pasternak, a recusar o Nobel de literatura por coação do governo

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WARNER BROS Cinema. Omar Sharif foi Iuri Jivago na adaptação de David Lean
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SÔNIA BRANCO AURORA F. BERNARDINI EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS (616 PÁGINAS, R$ 79,90)
DOUTOR JIVAGO AUTOR: BORIS PASTERNAK TRADUÇÃO: SÔNIA BRANCO AURORA F. BERNARDINI EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS (616 PÁGINAS, R$ 79,90)

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