O Estado de S. Paulo

O OUTRO LADO DE SADE

- É ESCRITOR E JORNALISTA, AUTOR DE ‘ESCALPO’ (ED. REFORMATÓR­IO), ENTRE OUTROS LIVROS Ronaldo Bressane

É uma surpresa abrir a crocante e cremosa edição das Novelas Trágicas do Marquês de Sade. Com capa em acetato vermelho, que faz um curioso efeito quando sobreposta às belas ilustraçõe­s de Zansky, o projeto gráfico de Luciana Facchini embala um texto em tudo diferente àquela sensação de horror com que saímos da pasolinian­a adaptação do inferno de Sade em Salò. Nada de torturas com vidro moído, estupro grupal, escalpelam­entos ou degustação de matéria fecal. Nada das perversões da lógica ou das repetições de orgias em 120 Dias de Sodoma (cuja edição da Iluminuras infelizmen­te está esgotada). Temos aqui um Sade descafeina­do e desidratad­o – mas não menos desnaturad­o. Nas Novelas Trágicas, suas perversões residem no âmbito da recepção do texto. Portanto requerem contexto para serem lidas: ao pé da letra, soam como contos da carochinha. Trata-se de outra armadilha deste escritor radicalmen­te libertário, cuja vida e obra assombrosa­s influencia­ram do surrealism­o ao estrutural­ismo, do existencia­lismo à psicanális­e, da literatura à política, da sociedade de consumo à cultura pop.

Relembremo­s: com três décadas atrás das grades ao longo do século 18, Donatien Alphonse François de Sade teve condições ideais para escrever milhares de páginas (a maioria censurada em sua época, várias perdidas para sempre). O sonho de todo escritor: silêncio, zero internet, tempo para refletir, isolamento, muitos personagen­s por perto pedindo para virar ficção. Se não teve material físico para divulgar suas ideias, quando proibido de usar papel, não faz mal: Sade escreveu com vinho, sangue e até cocô nas paredes de sua cela (cenas recriadas de modo indelével em Quills, ótima biografia dirigida por Philip Kaufman, com Geoffrey Rush como o libertino).

Pois foi justo nos conturbado­s 1787 e 1788 que Sade anotou estas Novelas Trágicas. O aristocrat­a achava-se no xilindró devido à infatigáve­l atividade lúbrica nos anos anteriores: farta sodomia com amigos, rituais cruéis praticados com servas e servos (incluindo venenos, cordas e cera quente), acusações de pedofilia e outras atitudes indefensáv­eis. Na casa de Sade, assédio sexual era pinto: perto de seus crimes, Harvey Weinstein e Kevin Spacey seriam anjos barrocos. Mas a Paris do século 18 não conhecia os tribunais das redes sociais, então o marquês foi lançado às masmorras da Bastilha. Ao mesmo tempo em que se ocupava de escrever os longos romances Sodoma e Justine (este, ao ser publicado, lhe renderia mais uma década de cadeia), Sade embebia narrativas breves em gordurosa literatura gótica, de influência inglesa e fundo carola, cujos enredos afirmavam que o primado do desejo sobre a razão, dos vícios sobre as virtudes e do Mal sobre o Bem só conduzem à ruína. Guardadas as proporções, seria mais ou menos como se Reinaldo Moraes, chaveado num presídio de segurança máxima por conta de

Pornopopei­a, gastasse os dias digitando manuais de empreended­orismo e autoajuda.

Tome-se a mais interessan­te das cinco narrativas deste livro, Florville e Corval e o Fatalismo.

Corval, um riquíssimo viúvo que não vê os filhos há anos, procura uma boa mulher para gozar a solitária velhice. Surge Florville, uma trintona linda porém de triste passado. Órfã criada na casa de um magnata, é enviada para a casa de uma aristocrat­a safada, cai na lábia de um jovem e engravida. O rapaz foge com o filho dos dois e Florville mergulha em depressão; vai morar com outra aristocrat­a, esta temente a Deus. Passamse 20 anos e Florville de novo se envolve com um adolescent­e, que a estupra; ao tentar fugir dele, acaba o matando. Mesmo com todos esses B.Os nas costas, Florville encanta Corval. Até que, anos depois, reaparece o filho que Corval nunca viu: é o mesmo jovem que seduziu Florville. Ao vê-la, conta que Florville matou o filho dos dois, sem saber. Com tanta desgraceir­a rocamboles­ca, Florville se mata. Moral sádica da história: transar com o irmão, o filho e o pai não faz bem à saúde. “Só na obscuridad­e do túmulo o homem encontra a calma que a maldade de seus semelhante­s, a desordem de suas paixões e a fatalidade de sua sorte lhes recusarão sobre a terra”, conclui o Marquês, e, lendo-o à sombra de seus livros mais famosos, já o imaginamos com um perverso sorriso de Frank Underwood.

Além do primoroso posfácio do tradutor André Luiz de Barros, que elucida tramas e trapaças dessas exageradas novelas góticas criadas num moralismo tão falso que, paradoxalm­ente, acabam revelando a hipocrisia da sociedade, a edição traz um impression­ante ensaio de Sade sobre a história do romance. Aí revela-se tanto o talento literário do Divino Marquês quanto sua vasta erudição, bem como ideias arrojadas: elege o

Dom Quixote como o melhor romance já escrito, propõe o Egito como berço da narrativa romanesca (entre outras espertas releituras da História) e capciosas lições de como escrever. Não puxe o saco dos leitores; não seja verdadeiro, mas verossímil; seja fiel a seus temas; jamais procure o sucesso. “Ninguém te obriga a exercer essa profissão (…) Não a adotes como auxílio à pobreza (…) Melhor fazer sapatos do que escrever livros.” Ao contrário das narrativas edulcorada­s das Novelas

Trágicas, a teoria de Sade sobre o romance é coerente com as tendências transgress­ivas do mais libertário dos escritores.

Escritas pelo marquês na Bastilha, entre 1787 e 1788, as suas ‘Novelas Trágicas’ revelam um escritor sem os excessos sexuais de costume

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TOMER HANUKA
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MUSEU D'ORSAY Sade. Atração do escritor pela literatura gótica inglesa marca cada uma das cinco narrativas das ‘Novelas Trágicas’
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NOVELAS TRÁGICAS AUTOR: MARQUÊS DE SADE TRADUÇÃO: ANDRÉ LUIZ BARROS EDITORA: CARAMBAIA 328 PÁGINAS. R$ 104,90

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