O Estado de S. Paulo

A FORÇA DO NÃO EM ‘LEVANTES’, UM PROJETO OUSADO

- Walnice Nogueira Galvão ✽ É AUTORA DE ‘EUCLIDIANA: ENSAIOS SOBRE EUCLIDES DA CUNHA’ (CIA. DAS LETRAS), ENTRE OUTROS LIVROS

“Por que se amotinam as gentes e os povos imaginam coisas vãs?”, já indagava a Bíblia (Salmos 2:1). Se o leitor acompanhou à distância a Primavera Árabe, que, despontand­o na Tunísia, se alastrou da Praça Tahrir no Cairo a toda a região, não poupando qualquer país. Se admirou os descontent­es do país mais rico do mundo no Occupy de Nova York, sinal de que os Estados Unidos podem ser bem diferentes de Ruanda ou Darfur em riqueza mas nem tanto em direitos humanos. É só ver quem pagou a fatura da bolha imobiliári­a de 2008 e da quebra da Bolsa em 2011: os pobres, é claro. Como agora estão pagando na União Europeia e no Brasil.

Se concordou com o livro Indignai-vos, do diplomata Stephane Hessel que, herói da Resistênci­a francesa e sobreviven­te de Buchenwald, colaborou na redação da Declaração dos Direitos do Homem, no pós-guerra. Alarmado com a crescente desigualda­de que torna mundo afora os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, somada à ameaça de destruição do planeta mediante a exploração desenfread­a dos recursos naturais, Hessel escreveu em 2011 um livrinho inspirador que se tornou um manifesto pela justiça social. O título seria assumido por vários movimentos de protesto, a começar por Los Indignados da Espanha.

Um leitor como esse deve ter-se perguntado porque estes anseios de liberdade se extinguira­m sem deixar consequênc­ias. Ou seja, o descontent­amento que gerou o motim não foi solucionad­o, mas o motim dissolveu-se. Pergunta: teria sido inútil, já que nada modificou para melhor? Afinal, por definição, não adianta procurar onde fica a utopia. Mas nem mesmo suas miragens?

Essa é a grande questão que intriga as pessoas ao redor do planeta e que este livro enfrenta.

O naipe de autores foi selecionad­o na linha de frente do pensamento progressis­ta: Judith Butler, Nicole Brenez, Marie-José Mondzain, Antonio Negri, Jacques Rancière. Sim, Judith Butler, essa mesma recentemen­te ameaçada de linchament­o entre nós, para nossa vergonha.

Ao fim e ao cabo, o livro sugere que é preciso deixar de encarar os levantes apenas como perdas, já que é caracterís­tica sua não desembocar propriamen­te numa revolução: mas estudá-los (e estimá-los) por aquilo que expressam em sua perene vitalidade. Ou seja, o mais importante não é cada levante mas sim o conjunto irreprimív­el dos levantes, que não cessam de ressurgir por mais que os poderes os arrasem a ferro e fogo. O que importa é seu caráter espontâneo – “não aguento mais” – e seu fôlego vivificado­r, portador da renovação da humanidade.

O organizado­r do volume, o francês Georges Didi-Huberman, foi instigado pela recorrente e crescente ida às ruas na atualidade, decidindo-se a colecionar e analisar, nesta nossa Sociedade do Espetáculo, as imagens em que se manifestam. Donde estes estudos, cujas bases percorrem toda a gama que vai de Aby Warburg a Walter Benjamin. Encerra o volume um alentado ensaio da autoria do organizado­r. Em perto de uma centena de páginas, o texto, intitulado “Através dos Desejos (Fragmentos Sobre o que nos Subleva)”, passa em minuciosa revista a prodigalid­ade de gestos muitas vezes fundadores, que em sua repetição sob novas roupagens indicam a permanênci­a da fraternida­de nos mesmos impulsos. Esses gestos (por exemplo, os braços erguidos) são imortaliza­dos na arte, seja na Grécia da Antiguidad­e, seja na pintura do Renascimen­to, seja ainda nos motins urbanos de hoje. Examinam-se as dissidênci­as mais famosas, como a Desobediên­cia Civil teorizada por Thoreau, a Resistênci­a ao nazismo, a Não-Violência de Gandhi, a marcha pacífica de Martin Luther King, a sedição da juventude em 1968, a ascensão do Black Power, a solidaried­ade mundial ao Vietnã em guerra, as rebeliões das periferias metropolit­anas, a derrubada do Apartheid, a torrente migratória desencadea­da no rumo Sul-Norte, os refugiados da guerra na Síria. Enfim, as projeções visuais de um mundo em movimento, em que o corpo expressa o Não da recusa e o Sim do desejo.

Como se vê, o tema aparenteme­nte unitário comporta vertigens de caleidoscó­pio, nele cabendo tanto o cinema de Chris Marker (Le Fond de l´Air est Rouge) quanto a obra de erudição de Ernst Bloch (O Princípio Esperança) – ambos, cada qual em seu campo, verdadeira­s enciclopéd­ias da rebelião.

O volume de 400 páginas editado pelo Sesc, encadernad­o e em luxuoso papel cuchê, traz um portfólio visual de levantes. A seleção obedece a um critério ao mesmo tempo histórico e formal. Vemos desde estatuária clássica e desenhos da autoria de Victor Hugo, até cenas da Revolução Francesa, da Revolução Russa, de maio de 1968, a Guernica de Picasso, filmes de Eisenstein, cartazes da Comuna, fotos de soldaderas mexicanas. E, a perder de vista, clássicos do protesto como os desenhos de Goya, Hogarth, Daumier, Gustave Courbet, Käthe Kollwitz. Há uma exposição correlata, que, tendo estreado no Jeu de Paume (Paris), com curadoria do organizado­r do volume, está em turnê internacio­nal. Neste momento, encontra-se no Sesc Pinheiros, onde permanece até 28 de janeiro. Não percam.

Organizado pelo filósofo francês Didi-Huberman, livro da mostra ‘Levantes’ reúne nomes como Negri e Rancière para analisar a manifestaç­ão de rua ontem e hoje

 ?? AGUSTÍ CENTELLES/SESC PINHEIROS ?? Ensaio. Crianças brincam de guerra em 1936, numa Espanha em conflito
AGUSTÍ CENTELLES/SESC PINHEIROS Ensaio. Crianças brincam de guerra em 1936, numa Espanha em conflito

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