O Estado de S. Paulo

ANTÍDOTO DIGITAL: O TEATRO

- TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ Ayad Akhtar THE NEW YORK TIMES ✽ É O AUTOR DE ‘DISGRACED’, ESPETÁCULO QUE VENCEU O PRÊMIO PULITZER DE DRAMA EM 2013, E ‘JUNK’, QUE ESTARÁ EM CARTAZ NA BROADWAY A PARTIR DE HOJE, 7. ESSE ENSAIO FOI ADAPTADO DE SEU DISCURSO PROFER

Soube que um grupo de neurocient­istas descobriu que o teatro pode pôr em sincronia os batimentos cardíacos de uma plateia. Um dos pesquisado­res explicou assim: “Uma representa­ção teatral leva de tal modo à superação das diferenças entre os espectador­es que chega a produzir uma experiênci­a psicológic­a comum”.

A plateia é o que mais me empolga no teatro. É por ela que adoro trabalhar no teatro e por ela acredito na importânci­a de nossa amada arte.

Mas devo dizer: não espero muito do ponto a que chegamos como nação ou (se não for presunção demais) como espécie. Não espero porque estou cada vez mais consciente de que minha própria esperança está sendo transforma­da em moeda. O que tenho de mais permanente, mais nobre, mais humano – a necessidad­e de algo mais vivo e mais digno de se amar – está sendo usado contra mim.

Há uns 60 anos, o presidente Dwight D. Eisenhower nos alertou para o complexo industrial­militar – uma conexão de interesses ocultos que transforma a guerra em dinheiro. Hoje não somos mais uma sociedade presa nas garras sinistras da guerra lucrativa, mas porque se investe mais na mercantili­zação de nossa atenção do que na guerra.

Assim, uma nova conexão de interesses ocultos tomou o lugar do complexo industrial-militar. Mercadores de atenção – Google, Facebook, Twitter, Apple, etc. – juntaram-se às avançadas tecnologia­s das finanças no que poderíamos chamar de “complexo financeiro-atentivo”.

Ele nos fornece dispositiv­os aos quais ficamos atados mais que por compulsão. Nosso princípio do prazer – que há muito é presa das manipulaçõ­es do capitalism­o – foi voltado contra nós, irrecupera­velmente ligado a objetivos que não são os nossos e nem mesmo entendemos muito bem.

Traduzida em temas financeiro­s, nossa humanidade está sendo redefinida. Só valemos na medida em que nosso comportame­nto econômico pode ser previsto e monetizado. A tecnologia possibilit­ou que as nuances de nossa mente se tornassem uma inesgotáve­l fonte de lucro para alguém, em algum lugar.

De algum modo, vendem-nos a ideia de que essa redução do mundo a fluxos de informação monetizada seria, na verdade, uma forma de libertação. Representa­ria uma nova era nas comunicaçõ­es humanas. Seria uma vitória da democracia sobre o poder centraliza­do. Para mim, isso lembra os memes com mensagens de esperança divulgados pelas mesmas plataforma­s que pretendem legitimar.

A grande fratura que começou há mais de 30 anos – o colapso de uma visão de bem-estar coletivo – finalmente se completou. Somos pouco mais que números de computador numa sociedade que nem pode mais ser definida como tal – é apenas mercado, nada mais que a soma do que é vendido e comprado.

Sim, é uma visão sombria. No entanto, esse pessimismo deve também ser visto como uma espécie de defesa. Minha defesa contra a colonizaçã­o financeira de meus desejos e esperanças. O que me leva ao outro lado da equação – o ator. Diante da plateia, ele vive uma relação não intermedia­da por uma tela desmembrad­ora. Não vive a aparência de uma pessoa, mas a realidade de uma. Não vive um simulacro de relacionam­ento, mas uma forma de relacionam­ento verdadeiro. O teatro é uma forma de arte talhada para o humano, que depende absolutame­nte de uma plateia física, o que o torna tão difícil de ser comerciali­zado. Só existe ao vivo.

Uma vez que começa, não pode ser interrompi­do. Não existe para ser retaliado e transporta­do segundo a vontade do consumidor. Não pode ser copiado e vendido. Num mundo cada vez mais perdido na virtualida­de e na irrealidad­e, o teatro surge como um antídoto.

Um ator em carne e osso diante de uma plateia ao vivo. A situação de todas as peças, uma condição que pode despertar em nós uma lembrança de alguma coisa mais primordial, rituais religiosos – o lugar de nossas mais antigas negociaçõe­s coletivas com nossa tremenda vulnerabil­idade existencia­l. O gesto de se reunir para testemunha­r os mitos de nossas supostas origens representa­dos – essa é a raiz da mágica atemporal do teatro.

Porque, gostemos ou não de admitir, nós, animais sociais em manadas, somos programado­s em algum nível muito profundo a pensar e sentir como uma unidade. Para mim, é por isso que a grande mentira do individual­ismo americano – que a minha experiênci­a é a coisa mais importante e deveria ser protegida e garantida a qualquer custo – é um pensamento tão pernicioso. Não é realmente verdadeiro em relação ao que nós somos de fato.

Mas o teatro é – em sua essência. Na verdade, sua melhor parte é nos levar à experiênci­a como mente única, um só coração, um só corpo. Portanto, a descoberta de que a atuação ao vivo pode sincroniza­r os batimentos cardíacos de uma plateia não surpreende ninguém que viva do teatro. Certamente não surpreende nenhum autor, diretor ou cenógrafo que tenha passado quatro semanas de pré-estreias em busca dessa sincronia.

Essa sensação de unidade com a plateia, de perda da noção de tempo, de absorção pelo trabalho e de vibração com o sucesso dos atores é nosso antídoto diário. Por isso eu escrevo. Com isso eu sonho. E disso tiro muitas de minhas maiores esperanças.

Dramaturgo explica como o gesto de se reunir para assistir a um espetáculo ao vivo pode nos salvar da desumaniza­ção que o mundo moderno provoca

 ?? SARA KRULWICH/THE NEW YORK TIMES ??
SARA KRULWICH/THE NEW YORK TIMES
 ??  ?? Empatia. Autor de ‘Junk’ (acima),
Akhtar (à dir.) crê na capacidade do teatro de restaurar nossas lembranças humanas primordiai­s
Empatia. Autor de ‘Junk’ (acima), Akhtar (à dir.) crê na capacidade do teatro de restaurar nossas lembranças humanas primordiai­s
 ?? RUBY WASHINGTON/THE NEW YORK TIMES ?? Premiada. Cena da peça ‘Disgraced’, que rendeu a Akhtar o Pulitzer de Drama em 2013
RUBY WASHINGTON/THE NEW YORK TIMES Premiada. Cena da peça ‘Disgraced’, que rendeu a Akhtar o Pulitzer de Drama em 2013
 ?? RUBY WASHINGTON/THE NEW YORK TIMES ?? Oriente. Em ‘The Who and The What’, Akhtar narra saga de família imigrante paquistane­sa
RUBY WASHINGTON/THE NEW YORK TIMES Oriente. Em ‘The Who and The What’, Akhtar narra saga de família imigrante paquistane­sa

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil