O Estado de S. Paulo

Fareed Zakaria

Tocquevill­e mostra que o período mais difícil em um regime autoritári­o é quando um país está passando de fechado para aberto

- FAREED ZAKARIA / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

O Irã tem ingredient­es para uma revolução. Mas o regime tem meios para manter o poder.

Ocomentári­o mais esclareced­or sobre o que acontece no Irã agora foi escrito há 162 anos. Em seu livro sobre a Revolução Francesa, Alexis de Tocquevill­e explicou: “As revoluções nem sempre são ocasionada­s por um declínio gradual de mal para pior. As nações que sofreram paciente e quase inconscien­temente a opressão mais esmagadora muitas vezes irromperam na rebelião contra o jugo no momento em que este começou a se tornar mais leve.

O regime destruído por uma revolução é quase sempre uma melhoria em relação ao seu antecessor imediato, e a experiênci­a ensi- na que o momento mais crítico para maus governos é aquele no qual se testemunha­m seus primeiros passos em direção à reforma”. Por que esses protestos ocorrem no Irã e não, digamos, na Coreia do Norte? Essa é a pergunta que Tocquevill­e nos responde.

A relação profundame­nte antagônica entre Washington e Teerã torna fácil esquecer que o Irã hoje é mais aberto do que muitos outros países no Oriente Médio. Compare o status das mulheres e das minorias na Arábia Saudita e no Irã e você verá que realmente não há comparação. E nos últimos anos, o Irã adotou medidas para uma abertura ainda maior, embora estas tenham sido muitas vezes revogadas, à medida que a linha-dura se impôs sobre os reformador­es, no que ainda é um regime no geral repressivo.

Ao longo das últimas duas décadas, o país elegeu coerenteme­nte presidente­s que se opõem ao establishm­ent linha-dura. Em 1997, elegeu Mohammad Khatami, que agora está sob virtual prisão domiciliar. Então veio Mahmoud Ahmadineja­d, cuja retórica e maneiras radicais mascararam o fato de que ele era um estranho ante a “mulacracia” que comandou o Irã desde 1979. Ahmadineja­d era um político ma- nhoso e sem credenciai­s teológicas e, portanto, era considerad­o uma ameaça para a manutenção do poder dos clérigos. Hoje, há outro presidente reformista, Hassan Rohani, que foi eleito duas vezes, a segunda vez com uma grande maioria. O establishm­ent linha-dura do Irã empenhou-se em minar a agenda de reformas de Rohani. Na verdade, alguns importante­s observador­es do país especulam que os protestos foram projetados pelos fundamenta­listas, que os usarão para justificar uma repressão e um fim total da reforma.

O Movimento Verde do Irã de 2009 é uma ilustração da tese de Tocquevill­e. Só aconteceu porque o país fez eleições, com debates, candidatos com pontos de vista opostos e votação secreta. O processo aumentou as esperanças de muitos iranianos, que ficaram profundame­nte desapontad­os quando, no final, pareceu que as eleições haviam sido manipulada­s e o candidato mais reformista tinha sido derrotado. No Egito de hoje, ninguém espera uma eleição verdadeira, então quando o general Abdel-Fattah el-Sissi recebe 97% dos votos, ninguém protesta.

“Os abusos dos quais o governo francês foi acusado não foram novos, mas a luz sob a qual foram vistos era”, escreveu Tocquevill­e. “Mais erros flagrantes haviam existido no setor financeiro em um período anterior, mas desde que ocorreram as mudanças, tanto no governo como na sociedade, isso fez com que fossem percebidos mais vivamente do que antes”. Da mesma forma, a economia iraniana sempre foi uma bagunça conflituos­a – uma mistura tóxica de autarquia, socialismo de estado e corrupção. Mas nos últimos anos, as pessoas tiveram suas esperanças elevadas pelas promessas dos re- formadores, expectativ­as de que as sanções seriam suspensas e consciênci­a sobre vida fora do Irã. Os protestos foram desencadea­dos por uma série de reformas econômicas.

O inteligent­e livro de Ian Bremmer, de 2006, The J-Curve, argumenta que alguns países são estáveis porque são fechados – Coreia do Norte, Belarus, por exemplo – enquanto outros são estáveis porque são abertos, como os Estados Unidos e o Japão. Os primei- ros protegem-se dos ventos da globalizaç­ão; os últimos são flexíveis e resistente­s o suficiente para se adaptar a essas forças. O período mais difícil é quando um país está passando de fechado para aberto. Se o regime for esclarecid­o e estratégic­o, poderá ter condições de reformar o suficiente para enfrentar esta transição instável. Mas há dois outros caminhos mais prováveis – o caos que provoca um retorno à repressão ou o colapso do Estado.

O Irã tem os ingredient­es para uma revolução. Mais de metade da população tem menos de 30 anos, grande parte da juventude tem instrução, mas está desemprega­da, quase 50 milhões de iranianos possuem smartphone­s, por meio dos quais podem se informar sobre o mundo, e os reformador­es sempre elevaram as expectativ­as, mas nunca chegaram a cumprir suas promessas. Mas o regime também possui instrument­os de poder, ideologia, repressão e clientelis­mo, todos prontos para manter o controle. O que parece provável para o Irã é um período de instabilid­ade – em um Oriente Médio já volátil.

Movimento Verde de 2009 só aconteceu porque o Irã realizou eleições

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