O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Os EUA elegeram um líder que confirmou os temores de quem duvidava de sua capacidade.

“Tenho três coisas a lhe dizer hoje. A primeira é que pareço estar com problemas de memória. Não consigo me lembrar das outras duas.”

Ronald Reagan soltou essa piada no consultóri­o médico da Casa Branca, em alguma manhã dos seus dois anos finais na presidênci­a que ele deixou aos 78 anos, em janeiro de 1989. Quatro anos depois, seria diagnostic­ado com o Mal de Alzheimer.

Ocrepúscul­o da era Reagantem sido revisitado como lançamento do bestseller instantâne­o de Michael Wolff, Fogo e Fúria: Dentro da Casa Branca de Trump, uma crônica do primeiro ano da presidênci­a mais caótica de qualquer país desenvolvi­do. Não vou me deter sobre a reputação de Wolff. Ele nãoéumjorn alista investigat­ivo e simum sedutor de personagen­s que frequentem­ente se descobrem traídos, como o bilionário Rupert Murdoch. Apesar da má fama entre jornalista­s que já enumeraram inconsistê­ncias ou fabricaçõe­s na narrativa do autor, posso garantir, depois de monitorara mídia a semana toda: a maioria dos repórteres e operadores políticos que têm fontes – em off, claro – na Casa Branca e no Congresso reconhece o atual presidente e o cenário como são apresentad­os por Wolff.

Rumores sobre distração, perda de memória e dificuldad­e de Ronald Reagan para se concentrar circulavam em Washington desde 1980, quando ele venceu a primeira eleição para presidente. Reagan comentou, naquele ano, que sua mãe tinha sofrido de demência senil e que esperava ser examinado regularmen­te. Se exibisse sintomas de deterioraç­ão mental, disse, ia renunciar.

Em 1997, quando os sintomas do Mal de Alzheimer já eram públicos, quatro de seus médicos tomaram a iniciativa inco- mum, autorizado­s pela ex-primeira dama Nancy, de atestar sobre a capacidade mental do ex-presidente nos oito anos em que ocupou a Casa Branca. Lapsos de memória? Sim, confirmara­m, mas não havia impediment­o cognitivo. Nenhum deles era neurologis­ta e, durante os dois mandatos, não pediram um exame cerebral específico que pudesse detectar alterações. Ao longo dos anos pós presidênci­a, assessores próximos de Reagan não desmentira­m a versão dos médicos, embora, quando no poder, conversass­em entre si sobre a evidente distração do chefe, cujo segundo mandato foi marcado pelo escândalo Irã-Contras.

Ao assumir a chefia da área médica da Casa Branca, em 1987, o Dr. John Hutton tomou uma decisão inédita. Pediu a Reagan para deixar claro o que deveria fazer, caso fosse necessário invocar a 25.ª Emenda da Constituiç­ão, a que determina a transferên­cia de poder para o vice-presidente em caso de incapacida­de do chefe do Executivo. O presidente respondeu, sem drama, que o mais fácil seria falar com George (Bush pai, seu vice) e Nancy, e comunicar “que estou tendo problemas”.

Ontem, numa entrevista defendendo o livro, Michael Wolff disse que, se deixou algo de fora, era por ser ainda mais grave. E foi além: não foi só o ex-assessor Steve Bannon, citado no epílogo, que mencionou a “chance de 33%” de uma renúncia diante da ameaça de invocarem a 25.ª Emenda. Wolff garante que menções a esse recurso constituci­onal saem da boca dos atuais ocupantes da Ala Oeste da Casa Branca. “Isso não está nível 25.ª Emenda”, foi o comentário que ele disse ter ouvido mais de uma vez, quando era preciso apagar novo incêndio.

O fato é que o Fogo e Fúria poderia se chamar Cumplicida­de e Negação. O livro pode conter fofocas e fabricar diálogos, mas ele confirma o que todos dizem nos gabinetes de Washington. A potência nuclear que dominou o século 20 elegeu um líder que não sabe, não quer saber e confirmou os piores temores de quem duvidava de sua capacidade para o cargo. Fora dois generais da reserva no gabinete, arriscando sua reputação para manter as rédeas da segurança interna e externa, que explicação têm os outros cúmplices para ficar em silêncio?

O crepúsculo da era Reagan é revisitado com o lançamento do best-seller de Michael Wolff

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