Nosso futuro será um chip?
Ofuturo que me perdoe, mas o passado é fundamental. A cada início de ano nos perguntamos sobre o amanhã sem olhar para trás e ver os erros e acertos de ontem. Às vezes nem percebemos que a pergunta é uma indagação e a tomamos como predição ou vaticínio, como verdade caindo do céu ou do inconsciente.
É o momento do sonho desperto – não o do incontrolável sonho noturno do sono – em que as fantasias se juntam a ilações, observações. Ou aos desejos. Surgem daí as análises com cara e jeito de previsão ou dogma profético.
Em 1918, após o morticínio da Grande Guerra iniciada em 1914, o alemão Oswald Spengler escreveu A Decadência do Ocidente, interpretando o desespero posterior ao primeiro conflito mundial. O armistício (ou rendição da Alemanha) não trouxera a paz. A “gripe espanhola”, com milhões de mortos espalhados pelo Ocidente, nascera dos cadáveres dos caídos nos campos de batalha e valia como condenação do modo de exercer o poder político.
A crítica de Spengler fez o Ocidente renascer, mesmo com o horror de nova guerra mundial e da bomba nuclear. Além de consubstanciar os direitos humanos, surgiram os avanços da ciência e a implantação da tecnologia, a começar na cozinha, com a revolução do liquidificador e da geladeira. O vaticínio foi semente, não veneno.
Em 1989, o norte-americano Francis Fukuyama escreveu o artigo O Fim da História (o livro foi publicado em 1992), com a tese de que o capitalismo individualista ou corporativo era a forma única de organização social. O fim da União Soviética abriu caminho à especulação. Mas as crises do capitalismo nos Estados Unidos (agravadas na era Bush filho) e na Europa, em especial na Grécia, desmentiram o “novo profeta” e Fukuyama desapareceu.
Em 2018, que grandes teses teremos? Ou haverá consciência de que as grandes teorias não mudaram o mundo por si sós? Ou alguém duvida que a invenção da roda aproveitou mais à vida e ao mundo do que as preleções de Sócrates ou o elitismo de Platão?
As ideias políticas e econômicas, com todos os seus profetas, não mudaram o mundo, só o alteraram. Às vezes, ao alterá-lo, seus intérpretes semearam o horror e o caos. Aí estão Hitler, Stalin, Pol Pot ou os generais ditadores latino-americanos, Brasil incluído. Ou, antes, Napoleão e Gengis Kahn. Ou, agora, a loucura dos talebans ou do Estado Islâmico.
As teorias político-econômicas não mudaram o mundo por uma razão: eram teorias, só isso. Ao contrário das ciências exatas (ou do que hoje chamamos tecnologia), nada tinham de palpável. Nelas não havia materialidade. Eram um bláblá-blá sério, com base na interpretação da História ou na dedução do desenvolvimento eco- nômico, não na experimentação. Às vezes funcionaram como profética dedução, tal qual no diagnóstico de Marx, mas pela metade, sem ver a outra face. E apenas isso, sem mais nada concreto.
A tecnologia fez um caminho diferente. Não deduziu nem fez previsões. Usou a experimentação. Não usou só a inteligência de prever, usou método mais simples e menos brilhante: descartar o erro, repetir a experiência sem se anteceder à própria experiência, prosseguindo até acertar.
E com um detalhe fundamental: agiu ou trabalhou sempre em laboratório, em ambiente restrito. O casal Curie provou os efeitos da radiação em si próprio. O que aconteceria se saíssem pela França e pelo mundo a verificar o que a radiação provocava?
Quando o ser humano desenvolveu a eletricidade, o mundo e a vida mudaram. Em fins do século 19, a física descobriu os condutores e semicondutores elétricos, e o mundo começou a ser outro e a viver de novas formas. Com eles criamos o horror da bomba atômica, mas também os isótopos da medicina nuclear ou eletrônica, além da comunicação instantânea atual, inseparáveis da vida moderna.
As doutrinas políticas des- pertaram as consciências, reconheceram e legalizaram direitos, terminaram com diferentes formas de escravidão ou subserviência, algo que as religiões já haviam tentado. Mas quem mudou a vida – ou criou a vida moderna – foi a ciência exata, a partir da física, da química e da matemática.
Chegamos, porém, ao limiar perigoso e perverso criado pela própria tecnologia. A chamada era digital pode nos transformar em bonecos, em robôs de aparência inteligente, mas – de fato – simples bonecos burros e estúpidos, sem iniciativa, sem volição nem inteligência ou capacidade de criar.
A continuar assim, só saberemos apertar botões para viver. Já não vamos raciocinar nem pensar, menos ainda indagar ou saber discernir ou analisar. Os botões ligados a um chip dirão como vamos pensar, discernir, analisar ou saborear.
A seguir assim, talvez até amor se faça apertando botões. Do amor de ternura ao amor de orgasmo, tudo num minúsculo chip...
O desenvolvimento tecnológico criou uma situação de perigo. A noção de humanidade desaparece, levando de roldão a solidariedade, a fraternidade e a visão do transcendente que a vida tem em si. Só a cobiça e a penúria dos políticos donos do poder não veem que caminhamos como servos para o novo despotismo da exacerbação tecnológica, que nos transformará em tolos idiotas e ignorantes.
E, pior ainda, guiados pelo espírito de lucro e cobiça de um grupo ínfimo em número, que – organizado em grandes empresas – fez da ciência um caminho para destruir a iniciativa individual. Assim, vão nos confinar num mundo em que o “chip” irá pensar e agir por todos nós.
Não haverá espaço para a espiritualidade que o jesuíta e teólogo Teilhard de Chardin catalogou como ponto essencial da condição humana, acima das religiões. Esse profeta (que uniu ciência e fé) e todo o pensamento humano darão lugar a um chip...
A era digital pode nos transformar em bonecos, robôs de aparência inteligente
JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005, PRÊMIO APCA EM 2004, FOI PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA