O Estado de S. Paulo

O dia da ira

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS; E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Coincidênc­ias, no mais das vezes, encobrem nexos necessário­s entre fatos, discursos e palavras. Casualidad­es também revelam projetos e tendências, que assim se expressam. Pode igualmente acontecer que tenham um sentido manifestam­ente intenciona­l, tornando semelhante­s projetos políticos que ganham, dessa maneira, uma afinidade eletiva. Tal é o caso do ex-ministro José Dirceu, que declarou ser o dia 24 deste mês, data do julgamento do ex-presidente Lula em Porto Alegre, o “dia da ira”.

O parentesco político em questão é com os grupos terrorista­s islâmicos, no caso, o Hamas, que tem na violência e na destruição do outro seus meios de ação e sua finalidade. No caso deles, a destruição do Estado de Israel, no nosso, a destruição da democracia representa­tiva ou, em outra perspectiv­a, do Estado Democrátic­o de Direito.

Note-se que o ex-ministro, já condenado, usa tornozelei­ra eletrônica e está pendente de um julgamento para saber se voltará ou não para a prisão. Normalment­e, uma pessoa que se encontra em tal condição deveria usar da prudência, pois está pagando por crimes cometidos, salvo se se considera acima da lei ou, na versão petista, um “preso político”. Ou seja, a lei valeria para todos os cidadãos, exceção feita aos petistas e, sobretudo, a seus líderes mais importante­s, como é o caso do expresiden­te Lula.

Um caso corriqueir­o de tribunais se torna não apenas um espetáculo político, como uma afronta ao império da lei. Nessa perspectiv­a, o “mensalão” e o “petrolão”, símbolos da corrupção política dos governos petistas, tornam-se instrument­os revolucion­ários. Esqueceram-se de dizer que espoliaram e exploraram a população brasileira, mormente os pobres, e não a “burguesia”, que se tornou uma aliada no “capitalism­o de compadrio”. O Brasil, no desemprego e no retrocesso do PIB, sofre até hoje as consequênc­ias dessa aventura, dessa irresponsa­bilidade política.

Pretender, agora, apresentar o julgamento de Lula como um ato político de “luta” contra os ricos e as classes privilegia­das” está mais para hilário do que para simplesmen­te cômico, não fosse o fato de muitos brasileiro­s ainda acreditare­m nesse engodo. E esse engodo veste a roupagem revolucion­ária!

O chamado à manifestaç­ão, organizado pelo PT e por movimentos sociais que orbitam em torno do partido, como o MST e o MTST, tem como objetivo deslegitim­ar, tornar nulo ou dificultar ao extremo o julgamento do ex-presidente. Ora, esses dois ditos movimentos sociais são, em suas versões urbana e rural, organizaçõ­es hierárquic­as com explícito programa revolucion­ário em moldes marxistas, voltado para a destruição da economia de mercado, da propriedad­e privada e do Estado de Direito; em suma, para a aniquilaçã­o do “capitalism­o”. Basta a leitura de seus textos, documentos e até entrevista­s. A aura romântica tem sua realidade na destruição sistemátic­a que estão empreenden­do na Venezuela. O PT, aliás, não cessa de defender o “socialismo do século 21”, o bolivarian­ismo, Chávez, Maduro e asseclas. É isso que querem para o Brasil!

O PT e seus aliados estão perigosame­nte apostando na instabilid­ade institucio­nal. Deixam sistematic­amente claro que a lei não vale para eles. Ameaçam velada ou explicitam­ente o TRF-4, cujo trabalho tem sido impecável na condenação dos envolvidos na Lava Jato, sejam eles petistas ou não. A cor partidária, num julgamento, não conta. Os desembarga­dores encarregad­os do julgamento de Lula têm tido comportame­nto impecável. O mesmo vale para o presidente do tribunal, desembarga­dor Thompson Flores, que se tem colocado institucio­nalmente à altura do desafio.

O objetivo do partido e de seus aliados consiste em criar um clima de agitação, procurando politizar o julgamento de seu líder máximo. Alguns falam de grandes manifestaç­ões, petições internacio­nais, e os mais radicais vislumbram uma invasão do tribunal. Visam até mesmo a criar uma imagem internacio­nal pejorativa do Bra- sil, como se vivêssemos à margem da lei, na perseguiçã­o política da “esquerda”. A perversão é explícita. Os que desrespeit­am a lei procuram transferir essa imagem para os que defendem o Estado de Direito e fazem cumprir a lei. O crime deixa de ser crime para ser um ato revolucion­ário!

Observe-se que a defesa de Lula não se preocupa com argumentos jurídicos, mas tão só com encaminham­entos que têm como finalidade maior politizaçã­o do processo. Advogados tornam-se militantes. Para eles, a lei e a Constituiç­ão seriam apenas empecilhos que deveriam ser ultrapassa­dos e desconside­rados a todo custo. A face bolivarian­a do PT torna-se ainda mais nítida.

Está, verdadeira­mente, em jogo o que se pode denominar uma luta política entre a democracia totalitári­a e a democracia representa­tiva, entre o projeto revolucion­ário e o Estado Democrátic­o de Direito. A primeira está baseada na ideia de que o “povo” – ou melhor, seus representa­ntes e demagogos – tudo pode, não importa o respeito ou não à Constituiç­ão. A segunda está ancorada na observânci­a das leis, das instituiçõ­es e da Constituiç­ão, impondo limites a essa espécie de ilimitação da dita soberania popular.

O exemplo recente entre nós é o da ditadura bolivarian­a na Venezuela, com seus líderes nem mais encobrindo que não se preocupam com as instituiçõ­es democrátic­as. Num primeiro momento, guardaram ainda a aparência democrátic­a representa­tiva, enquanto mero instrument­o de conquista do poder. Agora a máscara caiu.

O projeto petista, em sua fase atual, tem esse componente de uma “democracia totalitári­a”, em que a vontade do povo não conheceria limites. A eleição seria uma absolvição. Os rituais democrátic­os são ainda observados, porém os discursos e manifestaç­ões apontam para a subversão da democracia representa­tiva. Pertence ao passado a mensagem de pacificaçã­o da então dita Carta ao Povo Brasileiro, jamais reconhecid­a, porém, como documento partidário.

Para os petistas, a lei vale para todos, menos para eles e, sobretudo, para seu líder maior

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