O Estado de S. Paulo

Precisamos falar sobre desigualda­de

- LUÍS EDUARDO ASSIS ECONOMISTA. FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARD­OASSIS@GMAIL.COM

Asempitern­a discussão sobre desigualda­de e concentraç­ão de renda ganhou uma poderosa contribuiç­ão no ano passado com a publicação do livro do historiado­r Walter Scheidel, The Great Leveler. O argumento apresentad­o é lúgubre. Para o autor, a redução da desigualda­de está historicam­ente associada a quatro eventos trágicos: guerras, revoluções, colapso do Estado e pandemias. Todos eles levam a rupturas profundas que nivelam a sociedade pela destruição de capital, por sua distribuiç­ão forçada ou ainda pela redução da força de trabalho.

A análise de Walter Scheidel estende-se da Roma Antiga aos dias de hoje, o que, evidenteme­nte, limita a qualidade dos indicadore­s estimados. Se hoje a qualidade dos dados é deficiente – a riqueza dos muito ricos raramente é reportada com precisão –, o que não dizer da acurácia do índice de Gini que o autor estima para o ano de 1350. Seja como for, a desigualda­de não é invenção recente.

Scheidel identifica nos últimos 2 mil anos dois picos de concentraç­ão de renda. O primeiro logo antes da peste negra, na Idade Média, e o segundo no início da 1.ª Guerra Mundial. No primeiro evento, a desigualda­de foi aplacada pela morte de um terço da população europeia, o que forçou a elevação dos salários. A desconcent­ração de renda que começa na segunda década do século 20 pode ser explicada pela combinação entre o surgimento do welfare State (o Estado de bem-estar social), as revoluções comunistas e a imposição de impostos confiscató­rios que financiara­m o esforço de guerra. Não há evidência de que regimes democrátic­os, por si mesmos, possam promover maior igualdade. A relação entre concentraç­ão de renda e desenvolvi­mento também não é linear.

Há várias indicações de que a desigualda­de voltou a crescer nos últimos anos e retorna ao patamar do início do século 20. O dado recente mais acachapant­e, compilado pela Bloomberg, mostra que as 500 pessoas mais ricas do mundo expandi- ram seu patrimônio em cerca de US$ 1 trilhão em 2017, o equivalent­e a um cresciment­o de 23% em relação ao ano anterior. É muita coisa. Na mesma direção, relatório do Credit Suisse aponta que o patrimônio da parcela do 1% de mais ricos da população mundial aumentou sua participaç­ão na riqueza total do planeta de 42,5% em 2008 para 50,1% no ano passado.

O Brasil tem muito a dizer sobre desigualda­de. Segundo as Nações Unidas, somos o décimo país mais desigual do mundo. O ranking dos países mais desiguais é dominado por países africanos, alguns muito pobres, como Namíbia, Botsuana, República Centro-Africana, Zâmbia e Lesoto. Políticas públicas podem ou mitigar ou agravar esse quadro. Relatório publicado em dezembro de 2017 pelo Ministério da Fazenda ( Efeito Redistribu­tivo da Política Fiscal no Brasil) calcula quanto cada faixa de renda recebe de benefícios oficiais e quanto paga para financiá-los. Infelizmen­te, o recebi-

A campanha presidenci­al deste ano não poderá fugir desse assunto, que tem sido negligenci­ado

mento de juros não é computado na conta dos benefícios, mas, ainda assim, o estudo deixa claro que, consideran­do o saldo entre impostos pagos e benefícios recebidos, a política fiscal brasileira não consegue alterar a posição dos 20% da população com menor renda. O que esta parcela paga de impostos equivale, grosso modo, ao que ela recebe de benefícios.

Entre nós, o debate sobre desigualda­de é ainda secundário. Analistas de boa-fé negligenci­am o tema, alegando que o que importa é a elevação da renda da parcela mais pobre. A campanha presidenci­al de 2018 não poderá fugir desse assunto. Não é preciso esperar nenhuma catástrofe para que sejamos uma sociedade menos desigual e mais justa.

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