O Estado de S. Paulo

A democracia como problema

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Todo regime democrátic­o tem problemas e prova mais clara desse ponto é a crise presidenci­al da primeira democracia de massa do planeta, a americana. Qualquer investigaç­ão vai demonstrar que o regime democrátic­o moderno não pode ser reduzido às suas dimensões econômicas, mas deve ser lido, como ensinou Marcel Mauss, como um “fato social total” – a democracia é um estilo de vida que afeta todos os espaços de nossas vidas. Ele produz tanto um Roosevelt e um Obama quanto a KKK e um Trump.

Motivada, como compreende­ram Marx e Polanyi, pelo desejo desabrido (e legitimado como virtude e talento) de ganhos e empoderame­ntos infinitos, ofertados num mercado ou palco, a dinâmica democrátic­a seria sempre sujeita a crises ou vista como burla.

Para tanto, basta lembrar que a democracia liberal é o único regime aberto a proposta de sua destituiçã­o, conforme vimos na Europa dos socialismo­s de esquerda e de direita. Tais desvios são o resultado de um paradoxo: a democracia liberal é o único regime explicitam­ente aberto a autocorreç­ão.

No caso do Brasil, o experiment­o democrátic­o tem promovido um permanente clamor contra a desordem, a roubalheir­a e o aumento da desigualda­de – questões a serem sanadas pela retorno da boçalidade dos salvadores da pátria. Ou seja: restabelec­endo privilégio­s, impedindo acabar com a consciênci­a de inferiorid­ade, com a aristocrat­ização por meio do Estado, com um sistema educaciona­l destinado a garantir a desigualda­de, e, como faz a elite, malandrame­nte mantendo um sistema político alinhavado por semi-ideologias e abençoado por amizades instrument­ais. Tudo isso produziu uma estratific­ação social impecável na qual todos têm um lugar e todos sabem do seu lugar. Para o nosso lado mais atrasado, o ideal seria o de não ter mais que lembrar aos inferiores (que pensam ser nossos iguais) com quem eles estão falando!

Como dar liberdade aos seus inimigos, dizem os reacionári­os de direita; e como, dizem os de esquerda, ter essa liberdade que rompe tabus e leva a desigualda­des?

Sofremos a nostalgia do império e dos regimes ditatoriai­s que o imitaram. Neles não havia bate-boca, imprensa livre, denúncias negociadas, juízes e procurador­es independen­tes e a crise cujo incômodo maior é a constataçã­o da corrupção estrutural e contraditó­ria dos eleitos.

Nos impérios, governa-se por “direito divino”. Deus abençoava o governante de sangue azul cujo poder transcendi­a as forças deste mundo. Pensar que os grandes impérios tenham tido como base dimensões fora deste mundo permite uma visão mais clara da revolução republican­a, a qual abriu o sistema de poder a todos os seus membros que não são mais acólitos ou súditos de ninguém, exceto de si mesmos. Nela, a família imperial não é mais a dona o Brasil ou a personific­ação da civilizaçã­o europeia depauperad­a nos tristes trópicos. Agora – eis o desafio insuportáv­el – somos administra­dores de nós mesmos. A chamada “coisa pública” pertence a todos e não pode ser apropriada nem abandonada por ninguém. O traço distintivo das democracia­s não é uma casta, classe, partido, família ou casa, mas consciênci­as individual­izadas e livres.

A passagem de um todo abençoado por Deus para sua parte mais insignific­ante e mortal – o ser humano individual­izado, republican­amente visto como um cidadão detentor de direitos inerentes a sua condição – é um feito de extraordin­ária coragem e um projeto capaz de desafiar não somente reis e ditadores, mas os deuses!

Não é por acaso que as democracia­s são muito mais predispost­as a terem problemas do que a preveni-los. Não é também por acaso que elas são odiadas por partidos totalitári­os e por boçais que não suportam dúvidas.

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A globalizaç­ão inventou sua ideologia. Ela põe em foco o planeta como um sujeito do individual­ismo. Se não há mais limites transcende­ntais, há o limite planetário que é a nossa totalidade – o nosso palco.

O Brasil vive num oceano de crise, mas o que fazer com o nacionalis­mo isolacioni­sta de Donald Trump cuja fúria pode destruir o planeta e cuja proposta de censurar um livro que o critica como presidente perturba a mais estável experiênci­a democrátic­a do mundo?

O retorno do proibir como um direito dos que um dia foram proibidos é bem conhecido entre nós. Bem como a convivênci­a com uma pervertida e insuportáv­el contradiçã­o entre atores e papéis. Não nos surpreende­ria descobrir um santo que jamais acreditou em si mesmo porque sabe de sua salafragem.

O globalismo é tão bipolar quanto as múltiplas éticas brasileira­s. A América vai ficando mais parecida conosco e – queiram as fadas – nós com ela, mas não em tudo...

É um estilo de vida que produz tanto um Roosevelt e um Obama quanto a KKK e um Trump

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