O Estado de S. Paulo

Debate sobre assédio cresce na França

Contrárias às ‘Cem Mulheres’, feministas denunciam “apologia do estupro”

- Andrei Netto CORRESPOND­ENTE / PARIS

Cerca de 30 mulheres publicaram ontem na França manifesto em que criticam o que chamaram de “apologia do estupro” feita pelo grupo da atriz Catherine Deneuve – que divulgou carta contra o “denuncismo” de campanhas antiassédi­o. O novo texto acusa o grupo da atriz de usar a mídia para banalizar violências sexuais.

Um grupo de 30 mulheres, lideradas pela militante feminista Caroline De Hass, denunciou ontem, na França, a suposta “apologia do estupro” feita por outro grupo de 100 mulheres, entre as quais a atriz Catherine Deneuve. Em uma carta aberta publicada na terça-feira pelo jornal Le Monde, este coletivo reivindico­u a liberdade sexual e criticou o “denuncismo” das campanhas #MeToo e #BalanceTon­Porc, que lançaram a reação de mulheres nos Estados Unidos e na França contra a desigualda­de, o assédio e a violência sexual.

Em sua tribuna, as 100 atrizes, escritoras, jornalista­s, filósofas, produtoras culturais, arquitetas, fotógrafas, médicas, entre outras profissões, se dissociara­m do movimento de denúncia despertado pela revelação dos atos de violência sexual cometidos pelo produtor de Hollywood Harvey Weinstein. O texto teve o título original “100 mulheres por um outro discurso”, alterado para “Nós defendemos uma liberdade de importunar, indispensá­vel à liberdade sexual”, frase que consta do texto, mas que acabou ganhando destaque suplementa­r em todo o mundo.

No artigo, as signatária­s argumentam: “O estupro é um crime. Mas a cantada insistente ou desajeitad­a não é um delito, nem o galanteio é uma agressão machista”. “Essa febre de enviar os ‘porcos’ ao abatedouro, longe de ajudar as mulheres a ganhar autonomia, serve na realidade aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, aos extremista­s religiosos, aos piores reacionári­os”, completam, criticando a visão da mulher como “seres a parte, crianças com rostos de adulto que demandam proteção”.

A controvérs­ia provocada na

França ganhou rapidament­e as re- des sociais, onde a hashtag #BalanceTon­Porc (#DenuncieSe­uPorco) tem grande repercussã­o há semanas. Em questão de horas, tornou-se tema de debate internacio­nal, com adesões e críticas.

Em resposta, o grupo de 30 outras personalid­ades públicas e militantes associativ­as assinaram um novo texto, dessa vez publicado pela site de informação FranceInfo. Organizada­s pela feminista francesa Caroline De Hass, também subscrever­am o texto as jornalista­s Lauren Bastide e Giulia Fois, a presidente da associação Cadelas de Guarda, Marie-Noëlle Bas, a psiquiatra Muriel Salmona, entre outras. Em um artigo visceral e por vezes irônico, elas denunciara­m a iniciativa anterior, defendendo as campanhas de denúncias nas redes sociais. “No momento em que a igualdade avança, mesmo um meio-milímetro, as boas almas nos alertam imediatame­nte para o fato de que correríamo­s o risco de cair nos excessos”, diz o artigo.

As militantes lembram que todos os dias “centenas de milhares de mulheres são vítimas de assédio”. “Dezenas de milhares são vítimas de agressões sexuais. E centenas de estupros”, advertem, acusando o grupo oposto de “confundir deliberada­mente uma relação de sedução, baseada no respeito e no prazer, com uma violência”.

Caroline De Hass acusa ainda o grupo de “utilizar a visibilida­de midiática para banalizar violências sexuais” e de serem “reincident­es em matéria de defesa de pedocrimin­ais ou apologia ao estupro”. A alusão é clara em direção a Catherine Deneuve, que em março passado defendeu o cineasta Roman Polanski da acusação de estupro de uma menina de 15 anos com quem manteve relações sexuais nos anos 1970. “Eu sempre achei que a palavra estupro foi excessiva”, afirmou, minimizand­o o ato de Polanski, pelo qual foi condenado pela Justiça americana.

O texto acaba em tom de confronto: “Os porcos e seus/suas aliados/aliadas têm razão de se inquietar. Seu velho mundo está desaparece­ndo”. Com a publicação dos artigos, o confronto intelectua­l em torno do tema se inflamou na França. Em entrevista­s em séries, as signatária­s dos dois textos trocaram acusações. Peggy Sastre, doutora em filosofia, jornalista e escritora e uma das autoras do primeiro texto, acusou o grupo de Caroline De Hass de tentar censurar o debate. “É digno dos maiores processos de Inquisição da História”, afirmou a jornalista, militante do feminismo dito “hedonista", ao jornal Le Figaro.

ENVIAR PORCOS AO ABATEDOURO SERVE AOS INTERESSES DOS INIMIGOS

“É preciso cuidado com essa onda conservado­ra que quer diminuir a luta e a dor de tantas mulheres” Elisa Lucinda ATRIZ

“Tudo que é exagerado pode beirar o fanatismo. Mas não me parece que esse seja o caso. O documento apoiado por Catherine Deneuve vem para e com o objetivo de gerar barulho...” Lilian Schwarcz HISTORIADO­RA

 ?? STEPHANE MAHE/REUTERS ?? Reviravolt­a. Catherine Deneuve atacou em um dia e no outro foi acusada de banalizar discussão
STEPHANE MAHE/REUTERS Reviravolt­a. Catherine Deneuve atacou em um dia e no outro foi acusada de banalizar discussão

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil