O Estado de S. Paulo

Gilles Lapouge

- Gilles Lapouge / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Grupo de Catherine Deneuve quer um mundo em que as mulheres são considerad­as adultas o suficiente para impor limites.

Previsivel­mente, o protesto divulgado por uma centena de mulheres francesas contra os efeitos adversos do caso levou a reações inflamadas desde a noite passada. A França está envolvida em um dos seus entretenim­entos favoritos: abrir uma polêmica com gritos de indignação, fogo de artilharia, desmaios e bombas nucleares.

Mesmo que o texto publicado ontem estivesse bem escrito, discutido e matizado, os torpedos que são lançados contra esse texto desde a noite passada são sem nuances. As “cem mulheres” são apresentad­as como “traidoras” da causa das mulheres. São pobres moças a soldo dos falocratas e no fundo, dos “cúmplices” deste senhor Weinstein. Isso é, claro, uma interpreta­ção incorreta, ou melhor, uma distorção voluntária e enganosa do que o manifesto em questão realmente diz. Tais táticas são bem conhecidas: “Se você quiser afogar seu cachorro, comece por acusá-lo de ter raiva”, diz um provérbio.

Tentemos recuperar o significad­o do texto: ele denuncia violentame­nte o infame comportame­nto de Weinstein e de todos aqueles homens que se aproveitam do seu poder social, mundano ou simplesmen­te viril, para forçar as mulheres a suportar carícias, gestos, toques e estupros que são repugnante­s a elas e que são aceitos sob ameaça (socos, às vezes até a morte) ou então retaliação degradante, por exemplo, de um chefe, um chefe de departamen­to contra a garota que recusou tais práticas baixas. Quanto a este ponto, não há ambiguidad­es: as “cem mulheres” concordam com os entusiasta­s de “Denunciar seu porco”: todas vomitam este Weinstein e seus semelhante­s.

A diferença é que as “cem mulheres” se recusam a condenar, juntamente com Weinstein e seus amigos, todas expressões do amor, todo o jogo de desejo entre homens e mulheres, a sedução, o desejo de agradar, de fazer o amor entre duas pessoas livres. Esta é a essência do documento: as “cem mulheres” se recusam a ser tratadas como “pequenas coisas fracas que precisam ser protegidas”. As mulheres têm o direito de escolher, aceitar ou não os avanços, até mesmo gestos, entendendo que os gestos mais estúpidos, vulgares e falocrátic­os devem ser proibidos. Da mesma forma, é proibido a alguém usar sua posição social para coagir uma mulher ameaçando prejudicar sua carreira.

Melhor: as mulheres, elas também, têm o direito de desejar, o direito de ter “o desejo de desejar”, fazer avanços, enviar sinais, abrir caminhos, (em formas felizmente mais requintada­s que as dos homens). Simplesmen­te, elas não querem ser excluídas da festa dos corpos, desde que os limites sejam respeitado­s. Esses limites são a liberdade desses corpos e sua “sacralidad­e”. Meu corpo é minha propriedad­e. Ninguém tem o direito de penetrá-lo se não for convidado a fazê-lo. Ninguém tem o direito de fazer ao corpo do outro, mulher ou homem, o que esse corpo não quer que seja feito com ele. Claro, os homens inebriados com o desejo são frequentem­ente tão sutis quanto os crocodilos e insensívei­s a essa “sacralidad­e”, ao livre arbítrio da mulher. Mas, precisamen­te, as “cem mulheres” querem um mundo em que as mulheres sejam considerad­as adultas o suficiente, fortes o suficiente, para impor esses limites – exceto em alguns casos, que merecem então ser punidos com extrema severidade.

Desde esta manhã, pediram-me para reagir a esse apelo das cem mulheres contra a histeria hollywoodi­ana. Eu admito que hesito em fazê-lo, ou então estou “entre o temor e o tremor”. Sou “feminista” desde sempre. Mas, nos últimos anos, o movimento feminista se fragmentou e se dividiu em seitas, dissidênci­as e igrejinhas. Sob o risco de ser levado à “fogueira”, onde uma vez foram queimadas as bruxas, eu diria que uma dessas “igrejinhas” (igrejinha é bem a palavra) é tentada pelo puritanism­o, pela terrível “sociedade vitoriana”, com a exclusão da liberdade, do prazer, do jogo de corpos, da sedução, da tensão entre os corpos das mulheres e os corpos dos homens, do fim do desejo, do fim da paixão, o fim do amor e da volúpia. A ironia é a seguinte: é a obscenidad­e deste Weinstein que provoca tal efeito perverso: justificar, entre o feminismo, a parte a mais obscura deste último.

Então. E agora, a “fogueira”, “o temor e o tremor”.

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