O Estado de S. Paulo

A exceção

- LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

“Já leu o Cony, hoje?” A frase, dita num tom conspirató­rio, se repetia cada vez que saía um dos artigos do Carlos Heitor Cony no Correio da Manhã. Funcionava como uma espécie de senha. Era o preâmbulo para a nossa admiração pelo único jornalista da grande imprensa brasileira que se manifestar­a contra o golpe de 1964 desde o primeiro minuto, e para a nossa troca de entusiasmo­s pelos seus textos. O tom conspirató­rio se explicava porque ler e se entusiasma­r com o que Cony escrevia, em meio ao atordoamen­to geral, equivalia a um ato de resistênci­a.

O fato de ser único dava a Cony e sua rebeldia outro significad­o. Até começar a sofrer as represália­s do regime – ameaças e eventualme­nte prisões – Cony se valeu de um resto de liberdade permitida para escrever o que queria, a mesma liberdade disponível para outros jornalista­s, que preferiram não usá-la, ou por medo ou por coerência, porque tinham apoiado o golpe. Quando o regime fechou de vez e veio a censura ostensiva da imprensa o Cony não pôde mais ser nosso respiradou­ro, como o descreveu alguém, na época, e foi trabalhar para os Blochs. Mas ninguém pode lhe tirar a glória de ter sido, por um breve e luminoso momento, a exceção.

Outros se manifestar­am esporadica­mente contra a golpe, enquanto foi possível. Me lembro principalm­ente do Antonio Callado escrevendo – se a memória não me falha, o que eu duvido – no Jornal do Brasil. Mas ninguém ridiculari­zou e desautoriz­ou o regime com a mesma persistênc­ia e pontaria do Cony. Que nunca foi ideológico, apenas compartilh­ou conosco sua intransigê­ncia com o poder usurpado, e disse tudo que a gente queria dizer. Enquanto foi possível.

Os nostálgico­s da ditadura construíra­m um passado que nunca existiu, em que o País esteve em ordem, com progresso milagroso e sem corrupção, e generais se sucediam na Presidênci­a numa grotesca pantomima de democracia. A verdade estava nos porões da repressão onde tantos desaparece­ram e tantos foram torturados, sem que a imprensa controlada pudesse revelar a barbárie, depois que fecharam o respiradou­ro. Mas pelo breve e luminoso momento, obrigado Cony.

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