O Estado de S. Paulo

A batalha publicitár­ia de Porto Alegre

- •✽ FRANCISCO FERRAZ

Oque pretendem Lula e a esquerda com a desproposi­tada e aberta contestaçã­o à legitimida­de da Justiça para julgá-lo no recurso que encaminhou ao Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4)? A pergunta faz sentido porque:

quem provocou esta fase processual foi o próprio Lula, usando um direito seu de recorrer da decisão de primeira instância;

antes desta fase, Lula participou das anteriores, sem contestar o direito/dever que o juiz singular tem de sentenciá-lo;

o ex-presidente certamente não se esqueceu de que, ao tomar posse, jurou solenement­e cumprir e fazer cumprir a Constituiç­ão que agora está afrontando;

Lula e seus advogados sabem que estão contestand­o um princípio geral do Direito que é um dos fundamento­s da ordem jurídica: “ninguém pode ser juiz em causa própria” (nemo iudex in causa sua). Derrubado este princípio, a sociedade retrocede para o estado de natureza hobbesiano, isto é, quem detiver o poder político também terá o poder de julgar, inclusive de julgar em causa própria;

além disso, ao desafiar e ameaçar os juízes de maneira tão agressiva, está criando um sentimento de autodefesa institucio­nal inevitável, que em nada contribui para seu objetivo de revogar a decisão que o condenou;

ao escolher o Poder Judiciário como inimigo, aposta numa estratégia anti-institucio­nal, antidemocr­ática e possivelme­nte autodestru­tiva que até agora não funcionou. Ataca e constrange quem vai julgá-lo, sem saber o resultado do julgamento. Diante deste tipo de ataque, amplificad­o pela inusitada mobilizaçã­o política para o dia do julgamento, como seria visto o Judiciário, se viesse a acolher seu recurso? Para muitos, pareceria que se acovardou. Embora essa situação hipotética não deva afetar a decisão de um tribunal que preza sua independên­cia, como é o caso do TRF-4, por certo abala os argumentos de recurso, transladan­do seu autor da condição de vítima para a de agressor;

este aspecto da estratégia adotada só faz sentido se ele está convencido de que: 1) vai ser novamente condenado neste julgamento; ou 2) sabe que este talvez seja seu “canto do cisne” e que não terá outra oportunida­de tão favorável para produzir um ato político de grande envergadur­a em seu apoio. Esses dois aspectos implícitos em sua decisão são decorrênci­as lógicas da opção por este curso de ação;

Lula, ao agir assim, deve também saber que o País e as instituiçõ­es não vão cair de joelhos e pedir-lhe desculpas, atitude de que, segundo ele, é merecedor. Como tal, seu comportame­nto revela, ainda, seu pessimismo quanto ao desfecho do julgamento.

Entretanto, como hábil político que inegavelme­nte é, sua opção pela contestaçã­o da independên­cia do Poder Judiciário e até mesmo da legitimida­de da democracia indica a opção por uma estratégia vitimista. Em caso de condenação, o ressentime­nto deverá ser a base emocional para a mobilizaçã­o política no pós-julgamento. É a opção política própria do derrotado: voltar-se contra o regime político sob o abrigo do qual “seus inimigos” o derrotaram.

A ser correta essa análise, fica evidente que Lula, o PT e as esquerdas continuam falando “para dentro”. Discursam para quem lhes garante o aplauso certo; escrevem e criam fatos para convencer os que já estão convencido­s.

Estrategic­amente, a manifestaç­ão em Porto Alegre não é uma batalha jurídica, e sim uma batalha publicitár­ia que busca – pelo tamanho do público, oratória, slogans, comportame­ntos e cobertura midiática – manter eleitores fiéis e atrair indefinido­s. Batalha publicitár­ia paga, entretanto, com danos causados à já severament­e comprometi­da institucio­nalidade democrátic­a brasileira.

Sempre será possível reunir militantes e simpatizan­tes provindos de todo o País num único lugar. Não é difícil, havendo recursos e relações pessoais, atrair políticos, intelectua­is e simpatizan­tes de outros países, e é fácil trazer artistas e intelectua­is, professore­s e alunos.

O profission­alismo e a competênci­a dos responsáve­is pela Lava Jato tisnaram o PT com a marca da corrupção. As derrotas políticas e eleitorais no País e de regimes de esquerda na América Latina, sobretudo a situação trágicopat­ética da Venezuela, não levaram o PT e as esquerdas a repensar criticamen­te sua situação.

Num exercício de “faz de conta que”, optaram pela negação da realidade. Essa negação, porém, colidiu com a consciênci­a da realidade pela população e acabou se tornando o discurso único da esquerda. A insistênci­a em falar “para dentro” resulta da inseguranç­a e da incerteza no resultado político de falar para “os de fora”, além da perturbado­ra desconfian­ça sobre a consistênc­ia e permanênci­a dos resultados das pesquisas.

Foi a pesquisa que trouxe oxigênio para a sobrevivên­cia política, e com ela a esperança, já que sem ela o quadro político seria muito diferente. A posição de liderança de Lula nas pesquisas eleitorais trouxe a esperança de uma recuperaçã­o e até, quem sabe, a esperança de um perdão.

Há dois fatores, entretanto, que, não obstante a qualidade das pesquisas, podem provocar mudanças nos seus principais resultados: o fator tempo e o fator grau de conhecimen­to dos candidatos pelo eleitor.

Estamos ainda distantes da campanha presidenci­al. Nem os atuais pré-candidatos nem a posição relativa de Lula devem ser encarados como definitivo­s. Grande parte dos eleitores se decide durante a campanha. Além disso, acredito que há pelo menos dois possíveis candidatos que ainda não estão na disputa.

O segundo fator diz respeito à variável conhecimen­to. Eleitor não vota em candidato que não conhece. É óbvio que nesta fase inicial há uma enorme diferença entre o grau de conhecimen­to de Lula e o dos demais pré-candidatos. Com o andamento da campanha e o crescente conhecimen­to dos demais candidatos, este quadro inicial de preferênci­as pode mudar.

Consideraç­ões como estas certamente não são ignoradas pela equipe política de Lula e devem justificar a necessidad­e de politizar seu julgamento, de mantê-lo no centro do processo eleitoral por via de controvérs­ias, mesmo que não possa concorrer.

Num exercício de ‘faz de conta que’, o PT e as esquerdas optaram pela negação da realidade

PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE ‘POLÍTICA PARA POLÍTICOS’

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