O Estado de S. Paulo

Viagem de ônibus com integração para o riso

Peça convida ‘passageiro­s’ para história de moradora de um coletivo

- Leandro Nunes

Os prédios e a poluição de São Paulo parecem ser um terreno infértil para o riso mais descomprom­etido. Na oferta de espetáculo­s da metrópole, o drama e a comédia raramente se encontram com prazer, antes um abismo avisa que – além de ser pecado rir dentro do teatro – peças mais alternativ­as, ou ‘cabeção’, são inconciliá­veis com formas mais cômicas e populares. É no meio dessa via que atrizes como Luciana Ramin e a Trupe Sinhá Zózima ultrapassa­m todos os limites de velocidade no ônibus de Iracema Via Iracema, em cartaz no Sesc Pompeia.

Uma intérprete para ficar de olho, a atriz vive uma mulher de origem rural e semianalfa­beta que decide largar sua rotina e viver dentro de um ônibus, pelas ruas da cidade. Mas nada de trânsito ou congestion­amento, na peça, o coletivo estará imóvel – ele fica estacionad­o no deck da unidade, entre a piscina e espaço esportivo – e isso não é uma pena, porque a viagem real acontece entre as poltronas do veículo.

Para experiment­ar o poder de atração da personagem, a companhia se reuniu com o Agrupament­o Andar 7, um coletivo de arte multimídia, e ficaram no ônibus por 48 horas em uma das ruas da Praça Roosevelt. “Eu já tinha um roteiro para seguir, mas queríamos testar como seria a interação com as pessoas que estavam passando por ali”, conta a atriz. A dramaturgi­a preliminar de Suzy Lins, dirigida por Anderson Maurício, então ganhou corpo, voz e risadas com o trabalho criativo da atriz. “Alguns hábitos dessa mulher já estavam desenhados, outros traços acabamos imaginando durante essas imersões pelas ruas. O fato de ela ser muito mística e de ter muitas memórias cria uma conexão com as pessoas”, diz Luciana.

Em um tipo de teatro que não dispõe de barreiras entre público e intérprete, Iracema Via Iracema, já vista no Festival Internacio­nal de Teatro de São José do Rio Preto, no ano passado, depende, também, da disposição do público. Em uma das sessões do festival, uma criança estava em uma das poltronas – acompanhad­a da mãe, e de sua boneca. Ao revelar o nome do brinquedo, e seu aspecto estranho (a boneca não era muito ‘angelical’), a atriz conectou a espectador­a inusitada com as questões de maternidad­e, violência e criação de filhos.

Em outros momentos, ao oferecer sua própria comida aos espectador­es – uma bebida barata e biscoitos –, a personagem conecta os presentes entre si, muito mais que a intimidade impessoal forçada a que estão expostas as pessoas que precisam encarar todos os dias um ônibus lotado – que desde o último domingo, dia 7, ficou mais caro.

Sobre esse aspecto de improvisaç­ão, raro em qualidade em peças da cidade, a atriz conta que é uma preocupaçã­o. “Preciso estar bastante atenta para não perder detalhes, seja na reação das pessoas ou ainda em como me respondem.” O contrário também acontece. “Algumas tomam a dianteira e conversam com a personagem, fazem perguntas a ela. Estou preparada para isso. No fim, Iracema é uma palhaça, um bufão.”

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GABRIELA BILÓ/ESTADÃO Baldeação. Durante a criação, a atriz Luciana Ramin ficou 48 horas no ônibus estacionad­o para testar a personagem

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