O Estado de S. Paulo

Affonso Celso Pastore

- AFFONSO CELSO PASTORE EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. Pastore& ASSOCIADOS

Criptomoed­as geram oscilações de preços, razão pela qual BCs advertem sobre seus males.

Com grande atraso (o bitcoin existe há 9 anos) cresceu no Brasil o entusiasmo com as criptomoed­as. Inicialmen­te buscaram-se analogias com bolhas, como a dos bulbos de tulipa, mas as flutuações dos preços mostraram que este não era o caso. Não quero discutir bolhas, e sim a reação dos governos às criptomoed­as.

Por trás do bitcoin está uma inovação genial - o blockchain -, que é um “distribute­d ledger”, ou um “livro razão compartilh­ado” (ver análise do Government Chief Advisor, do UK) com registros eletrônico­s criptograf­ados de todas as transações. Se o blockchain for de fato imune a fraudes, como aparenteme­nte é, criptomoed­as seriam seguras quanto à liquidação. Porém, por que alguém a preferiria dispondo de moeda fiduciária garantida pelo governo, que lhes assegura: a) o curso forçado (legal tender), garantindo que têm que ser obrigatori­amente aceitas na quitação de quaisquer débitos ou transações; b) a exclusivid­ade no pagamento de impostos, que só podem ser pagos com a moeda oficial do país; e c) o controle através da política monetária da estabilida­de de seu poder aquisitivo.

É verdade que nas hiperinfla­ções, a moeda corrente do país afetado pode chegar ao extremo de ser substituíd­a pela de outro país, como nas “dolarizaçõ­es”. Mas estas são exceções raras, e criptomoed­as florescem em países estáveis, como EUA, Europa, e Reino Unido, onde a moeda oficial tem todas as boas caracterís­ticas descritas acima.

Meu convite à reflexão sobre as reações dos governos baseia-se no livro de Kenneth Rogoff, (The Curse of Cash, Princeton U.P., 2016). Nos seis primeiros capítulos ele mostra estimativa­s de que “o fato mais notável sobre o estoque de papel moeda nos vários países é seu tamanho”, que é surpreende­ntemente grande mesmo diante de formas de pagamento eficientes, como: transferên­cias por computador; cartões; e celulares. Mais surpreende­nte ainda é o volume de notas de elevada denominaçã­o, utilizadas para iludir o fisco nas “economias subterrâne­as”. Rogoff estima que na média mundial a economia subterrâne­a chegue a 14,2% do PIB, com os EUA (7,1%) no extremo inferior e Turquia (28,9%) no extremo superior, e tamanhos enormes em países como Itália (22,3%), Espanha (19,6%) e Grécia (25%).

Mas há outros usuários de notas de grande denominaçã­o, como nos paraísos fiscais; no tráfico de drogas; no terrorismo; e na corrupção. Rogoff reconhece que a corrupção reduz o cresciment­o econômico, e seus efeitos podem ser inferidos lendo o capítulo de Cristina Pinotti em Infraestru­tura: Eficiência e Ética, Elsevier 2017, e observando alguns valores parciais recentemen­te desvendado­s, como: dos desvios do governador do Rio; do escândalo da Petrobrás; das “contribuiç­ões” de Joesley Batista aos “governos”; e da foto das malas cheias de notas no imóvel usado por Geddel Vieira Lima.

O principal objetivo de Rogoff ao propor a extinção das notas de grandes denominaçõ­es está na necessidad­e, durante crises, de os bancos centrais praticarem taxas de juros negativas. O tema é detalhado nos capítulos de 7 a 13. O papel moeda paga juros nulos, e títulos públicos com juros negativos seriam substituíd­os por papel moeda, reduzindo ou até anulando a potência da política monetária. Mas explora também os ganhos de uma redução da economia subterrâne­a e das atividades criminosas, mostrando que compensam amplamente a inevitável perda da senhoriage­m quando as notas forem substituíd­as por dívida.

A criativida­de do mercado financeiro não tem limites: imposta uma restrição logo se descobrem formas de superá-la. Por isso, sou cético quanto aos efeitos da eliminação das notas de grande denominaçã­o sobre atividades criminosas. O uso das criptomoed­as substitui parcialmen­te as transferên­cias internacio­nais realizadas através de papel moeda, gerando oscilações de preços, o que é uma das razões – além da especulaçã­o, que não tem qualquer benefício - pelas quais os bancos centrais, inclusive o do Brasil, vêm lançando advertênci­as sobre seus males.

O lado positivo é a tecnologia do blockchain, que pode ser usada para inúmeros outros propósitos, que começam a ser explorados. Outro ganho que o blockchain permite aos bancos centrais é emitir suas próprias moedas eletrônica­s, com as vantagens da garantia do governo, seguindo o que já foi publicamen­te declarado pelos bancos centrais da Suécia, Cingapura e Japão.

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