O Estado de S. Paulo

A quinta morte da democracia

- BOLÍVAR LAMOUNIER

Examinando as condições de atraso econômico e assustador­a pobreza na virada do século 19 para o 20, Euclides da Cunha escreveu que o Brasil era um país “condenado à civilizaçã­o”. Não tínhamos como ficar parados, nem como andar devagar. Precisávam­os andar rápido e a direção só poderia ser a do progresso e da paciente edificação de instituiçõ­es.

Adepto da filosofia positivist­a, à qual não faltava certo viés autoritári­o, Euclides não percebeu que uma parte do problema já estava encaminhad­a desde 1824. É mais que óbvio: insistir no absolutism­o herdado do período colonial ou resvalar para o caudilhism­o hispânico seria o caminho mais curto para recairmos na fragmentaç­ão e na desordem. O Estado constituci­onal e seu corolário, o sistema representa­tivo de governo, amenizavam as tensões e delineavam um futuro – esse a que hoje denominamo­s democracia. Na última década daquele século, não fora o gênio de Rui Barbosa, é muito possível que tivéssemos sucumbido a um cenário extremamen­te destrutivo.

Num breve apanhado retrospect­ivo, podemos dizer que a morte da democracia representa­tiva foi anunciada pelo menos cinco vezes desde o início da República, e apresso-me a esclarecer que os respectivo­s argumentos ocorreram em muitos países, inclusive no sul da Europa, e que não os subestimo: não é minha intenção caricaturá-los.

A primeira morte foi concebida como um caso de mortalidad­e infantil. Os mecanismos institucio­nais da democracia – eleições, partidos, parlamento­s – não se conseguiri­am “desprender” do poder privado dos fazendeiro­s, chefes e mestres da política de campanário. A proveniênc­ia desse argumento era basicament­e protofasci­sta, mas o próprio Sérgio Buarque de Holanda o situou entre as principais “raízes do Brasil”. Para os povos latinos, ele escreveu, é difícil imaginar normas gerais pairando sobre nossa cabeça. A hidra do passado colonial deglutiria as nascentes democracia­s tão facilmente como uma sucuri deglute um cachorrinh­o poodle.

O segundo atestado de óbito veio nos anos 30, agora com uma nítida declaração de origem fascista. A democracia liberal, dizia-se, era plausível enquanto se restringia a rusgas entre partidos – que, afinal, não passavam de pequenos grupos de notáveis provincian­os – para decidir quem nomeava o agente local dos correios. Naquela quadra, escreveu Francisco Campos, o solitário autor da Constituiç­ão ditatorial de 1937, o liberalism­o concebeu o mundo político segundo a imagem da esgrima forense. Mas o advento do capitalism­o industrial elevou dramaticam­ente o nível dos conflitos, transforma­ndo-os em enfrentame­ntos mortais entre o capital e o trabalho. Nessa nova sociedade, sentenciou, só haveria lugar para “governos fortes”.

Depois da 2.ª Guerra Mundial, em todo o mundo a palavra-chave passou a ser “desenvolvi­mento”. O problema com a democracia seria sua incapacida­de de cumprir certos “pré-requisitos”. Ela só seria possível em sociedades que previament­e se houvessem adiantado economicam­ente, que contassem com uma população homogênea e altamente escolariza­da, e assentadas sobre um robusto consenso nacional. Pior ainda, a democracia seria incompatív­el com o “planejamen­to”, a nova panaceia econômica. Hoje é fácil perceber que essa nova elucubraçã­o se esquecia de um pequeno detalhe. A democracia não foi inventada para as sociedades desfrutare­m condições ideais após haverem superado cabalmente os seus conflitos, mas para que pudessem (e possam) equacioná-los com o mínimo possível de violência, dentro de um marco institucio­nal justo e acessível a todos os grupos relevantes.

A quarta morte da democracia foi atestada no contexto do conflito Leste-Oeste, principalm­ente pela voz dos ideólogos marxistas. Sua sentença de morte estaria embutida na rápida ascensão e na superiorid­ade tecnológic­a da economia planificad­a de tipo soviético. Até Isaac Deutscher, um homem culto, chegou a escrever isso. Antonio Gramsci fez um arranjo dessa peça para soprano ligeiro: o socialismo triunfará no campo da cultura, sem necessidad­e de recorrer a uma revolução sangrenta.

Mais complicada, até porque ainda se apresenta de uma forma nebulosa, é a quinta morte. O que se diz atualmente é que a democracia representa­tiva é incompatív­el com a sociedade de hoje, na qual já não se discernem classes sociais, mas sim uma infinidade ameboide de grupos, movimentos, conselhos, etc. O caos passou a ser a norma. Nesse quadro, o representa­nte não sabe a quem representa e a própria noção de representa­ção perde o sentido.

Ou seja, o mundo atual é um caos permanente, indefiníve­l, cujos contornos ninguém se atreve a tentar descrever. Que tipo de governo conseguirá mantê-lo sob controle? O chinês, no qual o Partido Comunista controla com mão de ferro um capitalism­o selvagem? A democracia dita direta, reminiscen­te do anarquismo, em que a bondade humana substitui a “mão invisível” de Adam Smith? Uma Venezuela em escala cósmica? Ou, quem sabe, uma regressão ao pretoriani­smo romano, como no reinado de Cômodo, no qual mercenário­s leiloavam seu apoio ao imperador? Claro, com uma pequena diferença: os mercenário­s de hoje não portariam precárias adagas como as daquele tempo, e sim vistosos AK-47.

Não subestimo nenhuma dessas hipóteses, mas penso que o problema é bem outro. Na história das democracia­s, o fator prepondera­nte nos retrocesso­s e rupturas sempre foi a falta de convicção das elites, sua falta do mais elementar bom senso e sua covardia quando o exercício da autoridade governamen­tal se fez necessário. A República de Weimar e o Brasil de 1961-64 são bons exemplos. Por tudo isso, dói constatar que o Brasil ainda não se livrou em definitivo do populismo e de uma classe política virtualmen­te desprovida de responsabi­lidade pública.

O fator prepondera­nte nos retrocesso­s e rupturas é a falta de convicção das elites

CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, É AUTOR DE ‘LIBERAIS E ANTILIBERA­IS’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

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