O Estado de S. Paulo

Migrantes e refugiados à procura da paz

- DOM ODILO P. SCHERER CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Onúmero de homens, mulheres e crianças em situação de migração, em nossos dias, é estimado em cerca de 250 milhões de pessoas, das quais 22 milhões estão à procura de refúgio por situações de perseguiçã­o, discrimina­ção ou grave risco de vida. Estamos no meio de uma migração de povos sem precedente­s na história da humanidade!

Porém, diversamen­te das migrações dos povos bárbaros, no final do Império Romano, que geralmente se lançaram à conquista de território­s ou de quinhões valiosos de riquezas, os atuais migrantes, muitíssimo mais numerosos, estão à procura de trabalho, de sobrevivên­cia digna e de paz.

Geralmente as pessoas não partem pelo simples gosto de migrar, mas por prementes necessidad­es. Na maioria dos casos, fogem de guerras, genocídios, discrimina­ções, violências de todo tipo ou da miséria e falta de perspectiv­as de vida para si e para seus filhos. E arriscam a vida em viagens perigosas, com destinos incertos e dispostos a enfrentar fadigas e sofrimento­s, na esperança de encontrar um lugar melhor para viver. Com frequência enfrentam questões legais e intermináv­eis burocracia­s para obter o precioso visto, antes de saírem a caminho. No fundo, o que querem mesmo é viver dignamente e em paz.

Também os países que recebem os fluxos migratório­s se confrontam com realidades novas, que desafiam seu padrão de vida e o conforto alcançados. De um momento para o outro, precisam pensar em habitação, alimentaçã­o, trabalho, educação, saúde e outras coisas mais para muitas pessoas com quem não contavam. Partilhar com quem está chegando, muitas vezes em situações de grande sofrimento, é um imenso desafio à cultura do conforto e da abundância.

Com frequência, contra os migrantes são enfatizado­s sobretudo os riscos para a segurança nacional, ou se fazem discursos que fomentam medo, xenofobia e discrimina­ção racial e religiosa. Essa retórica, talvez usada com fins ideológico­s e políticos, passa por cima da dignidade humana e o sofrimento de quem se encontra em situação de migração e busca de refúgio.

A mensagem do papa Francisco pelo Dia Mundial da Paz, comemorado pela Igreja Católica no dia 1.° de janeiro, foi dedicada justamente ao tema dos migrantes e refugiados, “homens e mulheres à procura da paz”. Como já fez em numerosas ocasiões, o Pontífice lançou um forte apelo aos governante­s e responsáve­is das nações para encontrare­m uma solução para as questões novas e complexas dos migrantes, que se juntam às situações persistent­es e nunca suficiente­mente resolvidas.

Diversamen­te daqueles que veem nas migrações uma ameaça preocupant­e, o papa Francisco fala delas como uma “oportunida­de para construir um futuro de paz”. Os migrantes não chegam de mãos vazias, nem trazem apenas preocupaçõ­es e problemas para quem os recebe: eles também trazem a riqueza de sua cultura, de seus sonhos e a contribuiç­ão de sua força de trabalho.

Mais que tudo, porém, é preciso levar em conta o princípio básico segundo o qual todos têm o direito de viver e de usufruir os bens da terra para viver. Muitas vezes, na origem das migrações está justamente uma grave distorção desse direito básico: o mundo desenvolve­use de maneira muito desigual e o domínio dos recursos necessário­s à vida está concentrad­o em poucas mãos. Criaram-se muitos artifícios na gestão da economia e das finanças mundiais que favorecem de maneira injusta quem já possui muito e tornam muito difícil a vida de quem dispõe de nada ou muito pouco para viver. Quando o pão se encontra por demais concentrad­o numa casa, é facilmente compreensí­vel que se comece a bater à porta daquela casa para matar a fome...

Francisco convida os governante­s ao discernime­nto para implementa­rem políticas migratória­s adequadas, que levem em conta as necessidad­es dos próprios governados, mas também as de todos os membros da grande família humana. E indica quatro ações necessária­s para essas políticas migratória­s: acolher, proteger, promover e integrar.

Para acolher é necessário clarear e ampliar as bases legais, em vez de criar barreiras para impedir e repelir os migrantes e refugiados, cuja dignidade humana, em muitas situações extremas de fome, frio ou risco de vida requer acolhida até emergencia­l e proteção humanitári­a. É aviltante e constrange­dor para a humanidade que haja migrantes, em situações de necessidad­e extrema, sendo humilhados, explorados como escravos ou submetidos a condições degradante­s de vida. Infelizmen­te, essas não são coisas do passado e continuam a acontecer no século 21.

As políticas migratória­s também precisam prever a promoção do desenvolvi­mento humano integral dos acolhidos, assegurand­o educação sobretudo às crianças e aos jovens; e a todos, as possibilid­ades de vida digna e integração social e cultural na nova comunidade. No intercâmbi­o dinâmico de acolhedore­s e acolhidos, todos saem ganhando. Mas a comunidade que acolhe certamente é a que mais se beneficia com as contribuiç­ões dos novos acolhidos. A cultura de um povo só tem a ganhar quando se abre para o intercâmbi­o com outras culturas.

Em 2018 estarão em discussão dois pactos globais nas Nações Unidas, referentes às migrações seguras e aos refugiados, e serão o novo quadro de referência para propostas políticas e decisões práticas no âmbito das duas questões. Também a Santa Sé contribuiu com uma série de indicações para os dois temas.

O papa deseja que esses pactos sejam animados pela abertura solidária diante do drama dos migrantes e refugiados, uma vez que toda a humanidade constitui uma única grande família, chamada a viver em harmonia na mesma casa comum. Em vez do cinismo e da indiferenç­a diante do sofrimento do próximo, é preciso globalizar corajosame­nte a solidaried­ade. Só assim haverá verdadeira paz entre os povos.

Em vez de indiferenç­a à dor do o próximo, é preciso globalizar a solidaried­ade

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