O Estado de S. Paulo

Animais com rodas

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com

Será que cabe à ciência explicar por que algo não existe? Foi essa a pergunta que me veio à mente outro dia quando me perguntei por que não existem animais com rodas. A ciência muitas vezes prediz a existência de algo e demora décadas para demonstrar o que foi predito – é o caso das ondas gravitacio­nais, preditas por Einstein e detectadas no ano passado. Mas não lembro de casos em que a ciência tenta explicar por que algo não existe. O que é comum é a ciência afirmar que algo é impossível porque contraria suas teorias. Meia hora mais tarde me ocorreu uma explicação para a ausência de rodas em animais. Fiquei feliz com minha “descoberta”, mas é difícil ser original. Chegando em casa fui procurar se alguém já tinha pensado nisso. E claro, um biólogo que admiro, Richard Dawkins, já tinha chegado à mesma conclusão em 1996. Mas a explicação é tão interessan­te que decidi botar o rabo entre as pernas e contar o caso.

Muitas das tecnologia­s que desenvolve­mos existem na natureza. A eletricida­de que corre pelos fios também circula pelos neurônios em nossos cérebros. Pistões hidráulico­s são o mecanismo propulsor de lulas e polvos. Câmaras fotográfic­as equivalem aos olhos. Sonares existem em morcegos. Microfones e ouvidos têm funcioname­nto semelhante, e o mesmo ocorre com alto-falantes e cordas vocais. Os exemplos são inúmeros, as exceções é que são poucas. Que eu me lembre, a energia nuclear e a roda são as mais óbvias. Não existir rodas em animais explica por que tudo que envolve rodas também não existe. Hélices para propulsion­ar aves, rolamentos e outras engenhocas com rodas tampouco existem. Rodas associadas a músculos (bicicletas e patins) são um meio de locomoção energetica­mente melhor que músculos (pernas e nadadeiras). E turbinas são mais eficientes que o bater de asas. Então, por que a força da seleção natural não fez com que essas estruturas surgissem?

A razão está na conexão entre a roda e o eixo. Os seres vivos compartilh­am algumas caracterís­ticas que surgiram bilhões de anos atrás e sempre foram mantidas. A mais conhecida delas é o uso de ácidos nucleicos (DNA ou RNA) para codificar e transmitir informaçõe­s. Outra caracterís­tica é a continuida­de física entre as partes do corpo. Um ser microscópi­co pode andar da minha unha até o coração sem ter de pular um vão ou fenda. Sempre existe um caminho de continuida­de. Esses caminhos têm uma função importante. É por causa deles que o sangue consegue chegar a todas as partes do corpo. É por essa continuida­de física que passam os nervos motores e sensoriais, e é em razão dessa continuida­de que uma parte do corpo pode crescer a partir de outra.

Agora imagine a relação entre um eixo e uma roda. Enquanto a roda estiver parada, cada parte do eixo está em contato com uma parte dela, mas, quando a roda gira, essa continuida­de é perdida. Imagine isso em um ser vivo. Como o sangue iria passar do eixo para a roda que gira? Como os neurônios iriam atravessar esse vão móvel? Ou seja, uma roda não pode ser alimentada a partir do eixo. Entre os seres vivos, todas as partes do corpo estão obrigatori­amente conectadas. Para surgir uma roda nos seres vivos, essa regra básica teria de ser alterada. E isso, apesar da enorme força da seleção natural, nunca ocorreu. Assim, animais com rodas não existem.

Mas nada é tão simples. Em algumas bactérias existem conjuntos de proteínas submicrosc­ópicas na parede das células que se organizam como se fossem um eixo e uma roda e giram a cauda da bactéria. Mas, nesse caso, o par eixo-roda não precisa de alimentaçã­o; eixo e roda são produzidos juntos e quando quebram são repostos.

Fica a questão: se a vida aparecesse em outro planeta, será que todos os seres vivos respeitari­am essas mesmas regras básicas? Ou lá encontrare­mos animais com rodas e aves com turbinas?

Para surgir uma roda nos seres vivos, uma regra básica precisaria ser alterada

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