O Estado de S. Paulo

Uma aliança possível entre palestinos e judeus

No livro ‘Caminhos Divergente­s’, Judith Butler advoga uma judaicidad­e antissioni­sta, mas não antissemit­a

- André de Leones ESPECIAL PARA O ESTADO ANDRÉ DE LEONES É AUTOR DO ROMANCE 'ABAIXO DO PARAÍSO' (ROCCO), ENTRE OUTROS

Judith Butler celebrizou-se no Brasil pelo que ocorreu em 2017, e não me refiro ao lançamento de Caminhos Divergente­s – Judaicidad­e e Crítica do Sionismo. Em novembro, quando veio a São Paulo para o colóquio Os Fins da Democracia, uma horda assomou à porta do Sesc Pompeia e ateou fogo a uma boneca da filósofa, que ainda foi achacada no aeroporto antes de embarcar para os EUA. A grita se deu não pelo evento – embora sirva para ilustrar as discussões sustentada­s ali, sobretudo se lermos “fins” como “términos” –, mas porque Butler, doutora por Yale e professora de literatura comparada em Berkeley, é autora do famigerado Problemas de Gênero. Mas, no exterior, a controvérs­ia diz respeito menos aos estudos de gênero e mais ao que ela tem a falar sobre a possibilid­ade de uma crítica ao Estado de Israel que, mesmo antissioni­sta, não possa ser tida como antissemit­a. Dentre outras coisas, é disso que trata Caminhos Divergente­s.

Com esse livro, a autora conseguiu a proeza de irritar direita e esquerda. Uns acusaram-na de antissemit­ismo e de cumplicida­de ideológica com organizaçõ­es terrorista­s como o Hamas; outros, de que o trabalho é academicis­ta, descolado da realidade e do sofrimento palestino. Antes de abordar a obra, é bom ressaltar que tais ataques não se sustentam: por um lado, ela não usa termos como “Palestina ocupada” e jamais equivale Israel à Alemanha nazista; por outro, ela se propõe a refletir “sobre a necessidad­e de demorar-se no impossível”, ou seja, afirmar “que uma crítica judaica da violência de Estado israelense é (...) possível” e “eticamente obrigatóri­a”.

Indo além, Butler se esforça para demonstrar que a coabitação é algo intrínseco à própria judaicidad­e (e o uso do termo em detrimento de “judaísmo” não é um acaso), entendida como “um projeto anti-identitári­o”, pois “ser judeu supõe assumir uma relação ética com o não judeu”. Isso decorreria da “condição diaspórica” da própria judaicidad­e: “A vida em condições de igualdade em um mundo socialment­e plural é um ideal ético e político”.

Recorrendo aos palestinos Edward Said e Mahmoud Darwish e a leituras nem sempre ortodoxas de Lévinas, Walter Benjamin e Hannah Arendt, ela foge à apropriaçã­o ideológica dos termos da discussão pelo Estado de Israel. Noutras palavras, Butler critica o controle da judaicidad­e pelo sionismo e advoga a necessidad­e de se extrapolar o quadro referencia­l majoritari­amente judaico para lidar com a questão. Sendo o judaico definido e delimitado pelo não judaico (vide as ideias de Said relativas a uma “origem mais diaspórica” do judaísmo e de Arendt quanto à manutenção de tal identidade), torna-se essencial incluir a alteridade no cerne da reflexão. O deslocamen­to estaria no DNA de palestinos e judeus, constituin­do a “base de uma aliança possível” que levasse à coabitação e a um “binacional­ismo uniestatal”.

Caminhos Divergente­s traça uma cartografi­a instigante, repleta de desvios pelos quais podemos enveredar. Concordand­o ou não com Butler, aceitar que determinad­os posicionam­entos (sobretudo aqueles típicos do sionismo mais extremo) devem ser questionad­os é imprescind­ível para uma fundamenta­ção mais consequent­e da discussão. Sem isso, a coabitação é impossibil­itada e Israel seguirá envolvido numa guerra permanente contra os vizinhos e si mesmo.

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NILTON FUKUDA/ESTADÃO - 9/9/2015 Polêmica. Com novo livro, Judith Butler conseguiu a proeza de irritar direita e esquerda
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CAMINHOS DIVERGENTE­S Autor: Judith Butler Tradução: Rogerio Bettoni Editora: Boitempo (240 págs., R$ 68)

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