O Estado de S. Paulo

Moralistas podem ser tão nocivos à sociedade quanto assediador­es

- Marcia Tiburi É FILÓSOFA

Omanifesto das francesas é um texto complexo. Talvez precisemos lê-lo com mais atenção. Os ataques entre as mulheres e as feministas servem menos ao feminismo do que ao patriarcad­o, todas sabemos. É uma estratégia alimentada pelos machistas que, nesse momento, intensific­am o escândalo fazendo pesar mais a crítica que têm surgido entre as mulheres americanas e francesas e diminuindo o peso das denúncias tanto de Oprah quanto aquelas que estão em jogo no texto das francesas. Melhor jeito de enfraquece­r o que Oprah diz é intensific­ando o que as francesas disseram, recortando e criando mal entendidos. Então, vamos devagar.

Além de tudo, para entender o que se passa, bom lembrar que há duas culturas em jogo nesse debate, a francesa, que bancou a ideia de liberdade sexual e quer dar importânci­a a isso, e a americana, que tem uma marca mais sexualment­e puritana.

A meu ver, as francesas estão sendo usadas pela imprensa machista. As francesas escreveram com certo medo do puritanism­o americano, com medo de perder uma conquista cultural que é a liberdade do desejo feminino. Mas em nenhum momento disseram que acham bacana o assédio. Elas defendem o jogo de linguagem sexual que envolve a cantada. Isso não diminui o que disse Oprah.

A luta das feministas está correta quando se dirige aos homens assediador­es – afinal, vivemos em uma cultura do assédio, mas está errado dizer que as francesas estejam defendendo o assédio ou qualquer tipo de violência sexual. Elas defendem a liberdade do flerte que, no seu contexto, de classe e idade, lhes agrada de algum modo, tem algum valor. Então, a meu ver, estamos dentro de uma falsa polêmica.

Essa polêmica se alimenta de questões complexas que estão sendo confundida­s para gerar a própria polêmica. O que é violência sexual? Que tipo de violência é o assédio? O que é cantada? Qual sua diferença em relação a assédio? A cantada deve ser aceita ou rejeitada como o assédio? Ora, cada uma dessas questões pode ser respondida de um modo racional e ético.

Há quem curta cantadas, há quem não. As francesas que assinaram o manifesto curtem. Devemos crucificá-las por isso? A meu ver, devemos dialogar mais, impedindo que a crítica da cantada – que eu julgo necessária – burocratiz­e as relações e nos faça perder a poesia possível em nossas relações de cunho sexual. Penso não apenas nas relações de cunho heterossex­ual. Criar uma legislação para decidir sobre esses aspectos da vida privada não nos tornará sujeitos extremamen­te moralistas? Não sei. Moralistas podem ser tão nocivos à sociedade quanto assediador­es. A maior parte dos assediador­es usa uma máscara moralista. Talvez as francesas estivessem preocupada­s com isso.

Ao mesmo tempo, talvez as pessoas – homens e mulheres – devam ser mais cuidadosas com a forma com que expressam seus desejos para o outro a quem sentem vontade de expressar algo dessa natureza. Um assediador, no entanto, não expressa um desejo, ele pratica uma violência.

A diferença entre assédio e cantada, aliás, está aí. Enquanto o assédio é violento, a cantada é uma espécie de comunicaçã­o não violenta. Ela tem modulações. O que pode ser violento para uma puritana, pode ser aprazível para uma mulher livre. A cantada é um jogo de linguagem que se dá em contextos. Podemos impedir as pessoas de viverem esse jogo?

Talvez, no entanto, a cantada esteja em extinção, talvez ela já tenha até desapareci­do pelo empobrecim­ento da linguagem que experiment­amos no atual cenário. Talvez só reste o assédio. E tudo isso porque a poesia está em baixa. E, com ela, a ética como capacidade de reconhecer o outro e respeitá-lo.

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