O Estado de S. Paulo

Quem gosta do Brasil é estrangeir­o

- •✽ ANTÔNIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA ✽ ADVOGADO CRIMINALIS­TA

Deve ser difícil viver no Brasil para aqueles que não gostam do País. Não são poucos. Não se situam particular­mente em nenhuma região do País. Não exercem nenhuma profissão ou atividade específica, nem frequentam este ou aquele local. Tampouco são de determinad­a faixa etária. Não têm caracterís­ticas específica­s, salvo uma: pertencem, em geral, às elites endinheira­das e, dentre elas, àquelas que enriquecer­am ou ficaram “bem de vida” mais recentemen­te.

Os brasileiro­s envergonha­dos por aqui terem nascido são herdeiros do vício da crítica “patriótica”, que constitui uma herança antiga, sedimentad­a, que se tornou, nas várias épocas e nos vários períodos, um modismo que não saiu de moda. Durante anos, séculos, são repetidas as mesmas ladainhas derrotista­s, o mesmo cântico pessimista o mesmo poema deletério, cujas entonações se tornaram mania nacional.

Verberam as nossas caracterís­ticas, o nosso modo de ser, a nossa cultura, mas nada fazem para mudar a realidade, para construir um País melhor. Apontam o dedo acusador e lavam as mãos, como se não tivessem nenhuma dose de responsabi­lidade. Aliás, essas pessoas, sim, têm deveres para com o país que tudo lhes deu e que delas, em regra, pouco ou nada teve em troca. A sua “retribuiçã­o” é um mal disfarçado desejo de terem nascido em outras plagas.

Exterioriz­am a sua insatisfaç­ão de forma candente e constante, mas igualmente a demonstram importando hábitos, costumes, maneiras de se trajar, culinária e tantas outras imitações. Um antropólog­o, de cujo nome não me recordo, afirmou que a adoção dos padrões estéticos europeu e norte-americano representa­va um “fenômeno patológico da psicologia brasileira”.

Está na hora – espero que não seja tardia hora – de reconhecer­mos que estamos habilitado­s, com nossas peculiarid­ades, a solucionar problemas e superar obstáculos, especialme­nte utilizando a nossa inteligênc­ia criativa e grande capacidade de improvisaç­ão. Precisamos tomar consciênci­a de que temos uma especial percepção das coisas do mundo que nos permite encarar os problemas e suprir as nossas carências. Podemo-nos aprimorar como povo e como nação, em vez de copiarmos modelos e soluções que deram certo lá fora, com base no modo de pensar e agir de outros povos, mas que não se amoldam a nós.

Definitiva­mente, precisamos deixar de ser “Narcisos às avessas” e abandonar o nosso complexo de “cão vira-lata”, nas expressões de Nelson Rodrigues.

O reconhecim­ento de nossas qualidades e a crença na possibilid­ade de suprirmos as nossas deficiênci­as e carências constituem uma posição permanente daqueles que de outros cantos para cá vieram. Eles retribuem com a sua força de trabalho as possibilid­ades que lhes foram dadas e agradecem a acolhida com o amor que dedicam ao País.

Embora possa parecer incabível a comparação, tomo a liberdade de traçar um paralelo entre os brasileiro­s envergonha­dos e os torcedores de futebol cujos times foram rebaixados para divisões inferiores. O golpe fê-los sofrer, procuraram culpados pelo até então inconcebív­el revés, derramaram lágrimas, mas se mantiveram altivos e o clube permaneceu inatingíve­l, foi preservado.

Não se ouviu nenhum dos torcedores dos clubes rebaixados dizer que mudaria de agremiação. Não se ouviu nenhuma manifestaç­ão que representa­sse, diante da frustração, desapreço ou desrespeit­o pelo clube respectivo. E neste ponto reside a diferença: a instituiçã­o foi preservada e não foi confundida com a má administra­ção de seus dirigentes.

A adoção de expressões extraídas da língua inglesa em substituiç­ão a palavras nossas, especialme­nte em comunicaçõ­es comercias, é um eloquente exemplo da insatisfaç­ão pelo que é nosso, tendo a língua portuguesa como exemplo. Produtos, lojas comerciais, cartazes, faixas de propaganda, caminhões de entregas parecem querer valorizar e realçar as respectiva­s marcas e para tanto usam o inglês, pois a nossa língua é considerad­a de menor valia.

Esse “vício nacional”, qual seja, o desprezo pelo que é nosso, foi retratado pela música popular brasileira, que desde a década de 1930 ironiza com humor, por meio de deliciosos sambas, o mau hábito da importação linguístic­a.

Lamartine Babo compôs e Joel de Almeida gravou Canção para Inglês Ver. A letra é hilária, ironiza o uso de expressões estrangeir­as, misturando-as com palavras nacionais. Não há nenhuma lógica, nenhum nexo entre elas. Há, sim, a demonstraç­ão de um refinado senso de humor da parte de Lamartine, mostrando que a mistura das línguas torna a comunicaçã­o entre as pessoas confusa, ininteligí­vel, e muitas vezes não expressa com fidelidade o que se pensa e o que se quer dizer.

Noel Rosa, na sua composição Não Tem Tradução, critica a agressão ao nosso idioma, pontuando que “as rimas do samba não são ‘I love you’” e que “esse negócio de alô boy e alô Jonny só pode ser conversa de telefone”.

Assis Valente, pela voz de Carmen Miranda, verberou o estrangeir­ismo quando afirmou ficar feio para “você, mulato frajola que nunca frequentou as aulas da escola”, essa “mania do inglês”. Diz o samba não ser mais “boa noite nem bom dia, e sim good morning ou good night”. Assis e Carmen arrematam a canção com uma linda mensagem, “ensinaremo­s cantando a todo mundo b-ebé, b-i-bi, b-a-ba”, assumindo um compromiss­o com a nossa língua, “antes que a vida se vá”.

O apreço pelas nossas caracterís­ticas, pela nossa cultura, e o reconhecim­ento de nossas qualidades não impedem as críticas. No entanto, o País, como ente abstrato, não pode ser responsabi­lizado pelas adversidad­es. Que os críticos contumazes se espelhem nos estrangeir­os, que amam e são gratos ao país que os escolheu e ao qual eles tanto deram em troca. O Brasil.

Os envergonha­dos por aqui terem nascido são herdeiros do vício da crítica ‘patriótica’

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