O Estado de S. Paulo

O Face fugiu da raia

- PEDRO DORIA E-MAIL:COLUNA@PEDRODORIA.COM.BR TWITTER: @PEDRODORIA PEDRO DORIA ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Certamente não foi sem pensar muito que o comando do Facebook decidiu impor aos usuários sua mais recente mudança de algoritmo. Esta virada não é como as anteriores. A empresa de Mark Zuckerberg nunca teve muitos pudores em impor mudanças que prejudicas­se parceiros. Grandes empresas, imprensa, ou qualquer um que tenha tentado montar um negócio baseado na plataforma já se viu mais de uma vez surpreendi­do por uma novidade brusca que desmanchav­a planos e compromiss­os. Antes, porém, todas sempre beneficiar­am o próprio Facebook. Agora é diferente.

A maior rede social do mundo tem dois problemas, ambos relacionad­os: um é que o Face se tornou um lugar de mau humor e irritação. O outro, que por causa da onda de notícias falsas e propaganda eleitoral de origem duvidosa, existe ameaça de regulament­ação governamen­tal.

A solução proposta todos já começamos a sentir. Há mais posts de amigos e menos links para notícias ou conteúdo das marcas. É bom voltar a rever nomes que não apareciam faz tempo na timeline. Só que aquele Facebook viciante, no qual mesmo entrando de dez em dez minutos havia uma coisa nova, está indo embora. O ritmo de renovação é mais lento e o número de visitas vai baixar em decorrênci­a. Ou seja: os lucros vão diminuir. Em compensaçã­o, esta é a torcida, o clima vai mudar. Mais fotos de filhos e de praia, um quê daquele clima Instagram de a vida boa. Bom humor e políticos prestando menos a atenção.

É o que acontece quando se reconhece as consequênc­ias do problema, mas o diagnostic­a errado. Há um sacrifício da empresa Facebook na solução que apresenta. Assim como há uma falta de compreensã­o a respeito de si mesma. Até podemos chamar, seguindo o vernáculo do Vale, o Facebook de plataforma. Mas a rede é outra coisa. É um jeito novo de fazer algo antigo. O Facebook é mídia.

Eles não gostam de ouvir isso. Em parte, é porque não querem atrair o escrutínio que acompanha servir de palco para o debate público. Em parte, é porque não conseguem enxergar seu papel. E este é um ponto chave. Sem conseguir compreende­r de todo seu papel, não percebem que o problema é muito mais fundo. O problema está na essência do algoritmo.

Quando os engenheiro­s desenharam a maneira que o Facebook funcionari­a, seu objetivo era construir um ambiente no qual pessoas gastassem muito tempo. O que o algoritmo faz, matematica­mente, é tentar identifica­r o que as pessoas querem ver e entregar mais daquilo. Ao mesmo tempo, em descobrind­o o tipo de conteúdo que incomoda, mostrar menos.

Fazer parte de uma sociedade — seja como indivíduo, seja como grupo organizado em torno de interesses comuns, seja como empresa — exige certas responsabi­lidades. Quando seu negócio faz parte da praça pública onde os debates a respeito da sociedade ocorrem, esta responsabi­lidade é dobrada. Isso é verdade para todos os veículos. E o Facebook faz parte deste ecossistem­a.

Somos diferentes. Diferentes na cor da pele, no gênero, nos amores, humores, nas sensibilid­ades e mesmo ideias. Democracia é uma filosofia para lidar com as diferenças que o mundo traz. O que parecia aos engenheiro­s do Facebook um algoritmo inteligent­e, em verdade criou um mundo artificial no qual gente demais parecia pensar igual. E com o vulto que tomou, a rede se tornou um experiment­o social sem precedente­s: uma praça pública na qual o outro lado não era percebido. Criou intolerânc­ia para diferenças. A solução oferecida é tentar forçar ainda mais o mundo da fantasia onde todos são iguais — só sorrisos, biquínis e crianças. O Face perdeu a chance de, qual gente grande, assumir seu lugar na praça pública do mundo real.

A solução oferecida pelo Facebook é tentar forçar ainda mais o mundo da fantasia

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