O Estado de S. Paulo

Miriam e Renato aos 80, na bela história de amor

- IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Quase 60 anos atrás, hoje estaríamos lendo as críticas de Romeu e Julieta, de Marcelo Lazzaratto, que estreou ontem à noite do Sesc Ipiranga. Naquela época, anos 1960, na hora de abrir a cortina, diretor e elenco estavam ansiosos nos bastidores esperando por ELE, enquanto o público que conhecia o meio teatral murmurava: ELE ainda não chegou. Minutos antes de a cortina se abrir, ELE entrava, apressado, amável, gentilíssi­mo, elegante, cumpriment­ava os conhecidos, sentava-se e o pano se abria. Era o ritual sagrado. ELE era Décio de Almeida Prado, que não fazia isso por se julgar estrela. Trabalhava no O Estado de S. Paulo e saía correndo da redação em cima da hora. Ou estava dando aulas na EAD. Mais tarde, esperou-se por Sábato Magaldi ou Delmiro Gonçalves. Formavam o trio mais importante da crítica teatral paulista. Respeito, admiração, certo temor. Mas, mesmo quando as críticas eram ruins, a maneira de escrever era pontuada pelo domínio total do que era teatro. Esperava-se os jornais saírem na madrugada (como nos filmes americanos) para se dormir contente ou frustrado.

Ontem, ao entrar no Sesc Ipiranga, senti a nostalgia daquelas noites de devoção. Apenas sabia que hoje não leríamos as críticas, como era o costume. Ontem, procurei no saguão e na plateia remanescen­tes de minha época de formação e descoberta e dei com vários. De qualquer maneira, a mágica continua. Estariam no palco Miriam Mehler e Renato Borghi, os dois com 80 anos. Numa encenação insólita de Lazzaratto, diretor corajoso que enfrentou há pouco tempo a indiferenç­a inexplicáv­el da crítica com sua Diáspora, espetáculo forte, com 40 atores em cena. Além de atualíssim­o, veja-se o documentár­io Human Flow, do chinês Weiwei.

Renato e Miriam mostram que não vão encerrar carreira sem terem feito um Shakespear­e, em uma peça das mais célebres, que tem cerca de 427 anos. Já vimos todos os tipos de Romeu e Julieta, até com Oscarito e Grande Otelo em uma deliciosa chanchada. Mas é preciso assistir à Miriam e ao Renato dando frescor e intensidad­e ao casal símbolo de paixão através dos séculos. Curiosa e arrojada encenação.

Sei que foi em 1964, não me lembro o mês. Quem não viveu aquele ano não sabe como tudo era confuso, esquisito, medroso. Todas as noites, eu saía do jornal às oito e meia direto para o Teatro Oficina no mesmo lugar em que ele está hoje, mas com arquitetur­a diferente.

Sim, todas as noites eu ia assistir a Andorra, de Max Frisch, dirigida por Zé Celso Martinez Corrêa. Ia porque tinha Miriam Mehler, lindinha de doer, num belo papel. E eu invejava Renato Borghi que contracena­va com ela, imaginava que fossem namorados. Borghi e eu tínhamos apenas um ano de diferença na idade. A pensão da dona Nina na Alameda Santos em que eu morava – Zé Celso ocupava um dos quartos – era a duas quadras da casa do Renato, filho de uma família de posses, belo apartament­o. Nos relacionáv­amos. Mas Miriam não namorava Renato que, por sua vez, amava Albertina Costa, espécie de musa do Oficina. Miriam casou-se com Claudio Marzo naquele mesmo ano de 1964, e todos os apaixonado­s por ela tomaram um porre na noite do casamento. Muitas mulheres também lamentaram, Claudio era belíssimo e bom ator.

Belos tempos em que esta idade, 80, parece ser recomeço. Renato Borghi mostrou toda sua força, recentemen­te, ao interpreta­r O Rei da Vela, ficando três horas e meia no palco, e colocando sua voz no fundo da plateia, porque aprendeu a fazer isso. Hoje, há atores que não ouvimos na primeira fila. Fui daqueles que vibrei na plateia, por ele e pelo Zé Celso. Miriam é um deslumbre. Os dois são uma bela história de amor ao teatro também. Gosto dessas sensações que me confundem, fascinam. A pessoa de 80, mas que para mim ainda tem 20 e poucos, com imagens misturadas de maturidade. Fluxo da vida. Gosto de continuar apaixonado por pessoas e interpreta­ções. Vou rever e rever Romeu e Julieta. Sem esquecer que no palco ainda estão Elcio Nogueira Seixas e uma ótima jovem atriz, Carol Fabri. Quem escreverá, daqui a dezenas de anos, uma crônica assim para Carol?

Dupla dá vida ao casal símbolo de paixão através dos séculos em ‘Romeu e Julieta’

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