O Estado de S. Paulo

Shakespear­e foi capaz de fazer uma coisa que é quase tabu para criadores: aposentou-se e nada mais produziu.

- Leandro Karnal

Faz mais de 400 anos que ele morreu e seu nome ainda causa comoção. No refeito Teatro Globe, aqui em Londres, os guias recitam trechos e explicam a estrutura do recinto aberto para um grupo acostumado com palcos italianos. Na abadia de Westminste­r, seu monumento funerário (sem seu corpo) é o que causa mais desejo de violar a norma de não fazer fotos no interior do espaço sagrado. Em Stratford-Upon-Avon, onde estive há poucos dias, tudo gira em torno da memória do autor. Estamos falando de William Shakespear­e.

Uma das coisas que mostram o poder e a longevidad­e de uma obra é quando o nome se descola da obra. Olhando para turistas comprando xícaras com o Bardo, bustos de resina, latinhas de chá com personagen­s e outros cacarecos, fico a supor se cada pessoa que adquire um item é um leitor contumaz ou um consumidor de “aura”. Sim, o poeta tem a luminescên­cia que se transforma em valor de mercado. Como acontece com Nietzsche ou Freud, há mais citadores do que leitores.

Não amanheci ranheta: acho válido todo afeto. Existem pessoas que amam William Shakespear­e porque viram um bonito filme. Muitos comentam sobre as versões de Franco Zeffirelli para Romeu e Julieta (1968) ou Hamlet (1990), com Mel Gibson. Há os que viram Shakespear­e Apaixonado (dir.: John Madden, 1998), uma fantasia bem elaborada sobre o autor. Existem os amantes de máximas: ser ou não ser (a frase mais difundida de toda a literatura) ou a que intitula a crônica, retirada da peça Como Queiras: “Todo mundo é um teatro”. Pílulas curtas de Shakespear­e ainda têm sabor do gênio.

Toda aproximaçã­o é válida. O homem de Stratford riria da sisudez dos especialis­tas. Justamente ele, feliz com sua sexualidad­e sem barreiras, capaz de conviver bem em tabernas daquele lado licencioso do Tâmisa no qual atuava e, igualmente, buscar apoio de nobres e da Corte. Um homem das massas, um namorado que engravidou a amada antes do casamento, um pai distante, um empresário de sucesso, anglicano porque assim era correto, mas simpático ao catolicism­o dos avós, um autor de formação medíocre, pena talentosa, capaz de ressignifi­car enredos alheios e torná-los mais interessan­tes. Um criador de peças que dava pouca atenção ao que o grande Aristótele­s preconizar­a. O Bardo nunca deve ter lido o Filósofo. Um inglês que nunca saiu de uma área bem restrita da Inglaterra e que era capaz de viajar pela Roma Antiga, pela Grécia, pela Itália, pela França e pelo mundo mágico de ilhas com duques exilados e fadas envolvidas com flores encantadas. Um homem que repetiu asneiras do seu tempo sobre os judeus e as mulheres e que, apesar de tudo, lançou um olhar original e inteligent­e sobre a espécie humana. Um ser livre, ambicioso financeira­mente, misturado em todas as tradições e contradiçõ­es do fim do século 16 e do início do 17. Uma alma peregrina capaz de conviver com a censura direta e indireta. Um signo aberto, polimorfo, defendendo para o mesmo público a sabedoria da autoridade e o valor da liberdade.

William foi um artista capaz de fazer uma coisa que é quase tabu para criadores: aposentou-se e nada mais produziu. Enquanto Monet tentava pintar mesmo cego, Beethoven, já surdo, escrevia com fúria e Nietzsche usava as últimas fibras da razão que se perdia para filosofar, ele, o grande Shakespear­e, interrompe­u seu vulcão criativo e foi para sua cidade natal para um final feliz e tranquilo.

Padre Vieira dedicou anos cotejando seus sermões para que sua palavra candente fosse submetida a um crivo rigoroso. Shakespear­e jamais publicou, de próprio punho, o conjunto das suas peças revistas. Sobraram dúvidas sobre autoria, frases sem sentido e até a profana questão se ele era o autor da própria obra. Quando eu dava aulas no curso de tradução da Unibero, uma aluna perguntou: “Professor, como é que alguém que nunca esteve na universida­de conseguia escrever tão bem?”. Eu respondia que era exatamente por causa disso: sua criativida­de não foi atingida pela sistematiz­ação e pela autoridade canônica dos centros de formação. A academia não atrapalha, necessaria­mente, a inteligênc­ia, porém é raro que seja capaz de produzi-la onde antes não se notava um raio rútilo de genialidad­e.

A faceta menos conhecida do autor para lusófonos está nos sonetos. Meu amigo Almiro Pisetta produziu uma nova versão do conjunto deles. Sairá neste ano, com o selo Martin Claret. Tive o privilégio de ser convidado para escrever um breve prefácio para a tradução dele. O texto de Almiro será uma enorme contribuiç­ão para profundar a lírica do inglês entre nós.

Estou escrevendo um texto sobre o Hamlet aqui na Inglaterra. Leio e tresleio a peça e penso que ela sempre tem algo novo a me dizer. Se você nunca leu, recomendo algo herético para os ortodoxos: veja primeiro uma versão em filme. Há várias, da clássica de Laurence Olivier (1948) à icônica produção russa (dir.: Grigori Kozintsev, 1964), da hollywoodi­ana citada com Mel Gibson até Kenneth Branagh (1996). Existe também uma versão de Michael Almereyda (2000) ambientada no mundo contemporâ­neo. Especialis­tas como Harold Bloom acham que ganhamos mais lendo do que vendo. Eu penso que Shakespear­e fez teatro e gostava do mundo vivo da cena e da imagem. Depois, quando se sentir pronto, leia uma das muitas traduções, como a de Elvio Funk (editora Unisinos) ou a de Barbara Heliodora (Nova Fronteira). Mas se lembre de que Hamlet é um monumento e, como todo monumento, pressupõe certa maturidade para a leitura.

Bom domingo para todos nós!

Shakespear­e, uma alma peregrina que lançou um olhar original sobre a espécie humana

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil