O Estado de S. Paulo

De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo

- •✽ ALBERTO AGGIO

No ano passado relembrara­m-se os cem anos da revolução bolcheviqu­e, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizan­tes do seu ideário.

Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonist­a do capitalism­o que se transformo­u num fenômeno global, influencia­ndo vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.

Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contrapont­o, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultanea­mente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressis­ta e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experiment­o com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertador­a e sistema concentrac­ionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidad­e anticapita­lista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriai­s e artífices de Estados policiais”.

Entre os historiado­res, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégia­s. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específico­s dos principais dirigentes e governante­s. Suas ações são inscritas em conjuntura­s precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiado­res e aos demais intérprete­s, e não uma discussão ideológica e justificat­iva. O que torna evidente a virada na perspectiv­a de muitos pesquisado­res é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiogr­afia, retirando centralida­de da discussão sobre poder revolucion­ário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.

O resultado não é em nada surpreende­nte. Diversos investigad­ores têm demonstrad­o que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolcheviqu­e e o poder soviético não produziram efetivamen­te uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentaçã­o. O julgamento é assim categórico e definitivo.

Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalism­o se afirmou durante séculos e o comunismo necessitar­ia ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.

Entretanto, essa história não está inteiramen­te arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivên­cia do “comunismo capitalist­a” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalism­o como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.

Essa alternativ­a estava inteiramen­te descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonare­m, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialme­nte, o que era reconhecid­o como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrátic­a italiana, vinda à luz com sua colaboraçã­o ativa. Acabou prevalecen­do o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.

A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelece­r como uma força política reformista voltada para a modernizaç­ão do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressis­tas, assumiu várias denominaçõ­es: Partito Democratic­o di Sinistra (PDS), Democratic­i di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratic­o (PD), nos últimos dez anos.

O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalis­ta e autoritári­o do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.

Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo socialdemo­crático e sua vertente democrátic­o-reformista. A preponderâ­ncia de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilid­ades de ser governo.

Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilid­ade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.

PROFESSOR TITULAR DA UNESP

O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalis­mo autoritári­o histórico

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