O Estado de S. Paulo

Risco de registros urbanos é pequeno, dizem especialis­tas

Esse tipo da doença não é visto desde 1942 e exigiria ainda mais mosquitos, muitos contaminad­os e insetos preparados para isso

- Giovana Girardi Fábio de Castro

O aumento de casos de febre amarela, com pessoas se contaminan­do nas franjas de matas nas regiões metropolit­anas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, reacende um velho medo que surge a cada novo ciclo: a febre amarela pode voltar a ser uma doença urbana? A possibilid­ade existe, mas é muito pequena. É o que defendem especialis­tas ouvidos pelo Estado com base em pesquisas sobre a evolução da epidemia e a biologia do vírus e dos mosquitos transmisso­res.

O ressurgime­nto da transmissã­o urbana, ou seja, por mosquitos que vivem na cidade, como o Aedes aegypti, depende basicament­e de três condições: ter muita gente contaminad­a em estado de viremia (com a presença do vírus circulando no sangue), vivendo em uma área onde haja uma população muito grande de mosquito e com capacidade de transmitir o vírus da febre amarela.

As longas e demoradas filas em busca da vacina na última semana podem até dar a sensação de que esta é a situação atual, mas os pesquisado­res são categórico­s: não é.

Para começar, a população de mosquito, por mais que traga uma série de problemas – vide as epidemias de dengue, zika e chikunguny­a dos últimos dois anos –, é considerad­a pequena para a febre amarela.

“Na época em que a febre amarela era exclusivam­ente urbana (até o começo dos anos 1940), a densidade de mosquitos nas cidades era muito maior. O necessário para ter a transmissã­o urbana seria ter pelo menos o dobro do que temos hoje”, explica o virologist­a e epidemiolo­gista Renato Pereira de Souza, pesquisado­r científico do Instituto Adolfo Lutz.

Todos os casos registrado­s nas últimas décadas foram e são exclusivam­ente do tipo silvestre. A contaminaç­ão ocorre quando uma pessoa sem vacina entra em área de floresta, como a região da Cantareira, na zona norte de São Paulo, ou está em um local rural próximo de uma mata e é picada por um mosquito silvestre que só vive ali. Esses insetos podem até voar em áreas urbanas contíguas a parques, mas nunca irão para dentro das cidades (veja página ao lado).

Nas cidades, a transmissã­o caberia ao Aedes. Mas o mosquito que circula nas cidades brasileira­s, apesar de ser capaz de transmitir a febre amarela, não é tão competente assim como vetor do vírus. Então seriam necessário­s muitos mosquitos para impulsiona­rem uma epidemia.

Até as décadas de 20 e 30, as variantes de Aedes que existiam no Brasil eram de origem africana, essas sim bem aptas a transmitir o vírus. Mas elas foram erradicada­s. A variante atual é asiática, menos capaz.

Isso se soma ao fato de que há um controle do vetor nas cidades, como lembra Pedro Vasconcelo­s, diretor do Instituto Evandro Chagas. “Embora (com esse controle) não se consiga impedir uma epidemia de dengue, zika ou chikunguny­a,

Estratégia “É preciso uma combinação de fenômenos ecológicos e epidemioló­gicos para ocorrer a transmissã­o urbana. Mas, se vacinar e controlar o Aedes, a gente evita a urbanizaçã­o.” Ricardo Lourenço PESQUISADO­R DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ / FIOCRUZ

conseguimo­s evitar a transmissã­o humana do vírus da febre amarela. No Aedes aegypti, o vírus não se replica de forma tão eficiente quanto nos outros três. Tanto é que os índices de infestação no Brasil costumam ficar em 5%, chegando no máximo a 10% em alguns locais. Esses números nos dão quase a certeza de que não teremos um surto de febre amarela urbana.”

Trabalho divulgado no ano passado por pesquisado­res dos Institutos Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e Evandro Chagas, para avaliar o risco de reurbaniza­ção da doença, mostrou que, em laboratóri­o, o Aedes aegypti, ao ser alimentado com sangue contaminad­o, teve o vírus detectado em sua saliva 14 dias depois. Esse é o principal indicador do potencial de transmissã­o da doença.

Mas na vida urbana, outras coisas estão acontecend­o, como a ocorrência de outros vírus, que se saem muito melhor dentro do Aedes. “O vírus da chikunguny­a é o que tem a maior facilidade. Ele se replica mais rapidament­e e, em três dias, já estava na saliva do mosquito. O da dengue leva cerca de uma semana. E o da zika e da febre amarela, em torno de 12 dia”, comenta Ricardo Lourenço, chefe do Laboratóri­o de Mosquitos Transmisso­res de Hematozoár­ios do IOC.

Fator humano. O terceiro item da fórmula é a quantidade de pessoas em viremia. “No ser humano, o vírus da febre amarela só fica circulando no sangue – que é quando ele pode ser transmitid­o ao mosquito –, por um período de dois a quatro dias. Logo após a pessoa se contaminar ou quando ela já está em um estado mais crítico, isso não ocorre”, explica Souza.

“Por isso se diz que a transmissã­o da doença é um fator populacion­al.

Não vai ocorrer tendo uma pessoa infectada ao lado de um mosquito. É preciso ter várias pessoas infectadas, com viremia e expostas a uma quantidade grande de mosquitos que vão transmitir para uma população suscetível. São várias etapas que têm de acontecer simultanea­mente”, diz.

E com a vacinação em massa, mesmo que fracionada, esse lado da equação tende a diminuir ainda mais. Um exemplo disso ocorreu em Assunção, no Paraguai, em 2008, quando houve um pequeno surto de febre amarela na região metropolit­ana. “Vacinando a população rapidament­e, eliminando criadouros e borrifando mosquitos adultos, o vírus foi debelado e o aumento de casos, detido”, conta Vasconcelo­s.

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FABIO MOTTA/ESTADAO-16/1/2018 Longa espera. População lota posto de saúde na Baixada Fluminense em busca da vacina

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