O Estado de S. Paulo

De pai para filho

- E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Recebi de um amigo a seguinte mensagem: “Ugo, fui matar as saudades do Pacaembu e ver Corinthian­s e Ponte. Que horror .... Ver o Kazim jogar me fez ter saudades até do Geraldão. Foi tão ruim que o pai leva o filho e ele prefere jogar vídeo game durante a partida”. O relato era acompanhad­o e uma foto onde se podia ver um garoto nos ombros do pai, os dois no meio da torcida, todos em pé. O garoto nos ombros do pai era visto de costas, tendo como fundo o campo e o jogo. Nas mãos tinha um celular, para o qual olhava atentament­e.

Intrigado pelo texto e pela foto, não resisti e liguei pro meu amigo. Confesso que os esclarecim­entos que ele me prestou me fizeram rir muito, embora talvez devesse chorar. De fato o estágio de selvageria em que chegamos por vezes ronda a comédia; às vezes é muito engraçado pelo exagero do escracho e também pela naturalida­de com que ele é aceito. Devo esclarecer que meu amigo é um homem de meia-idade, bem-sucedido na vida, que só foi se meter nas populares do estádio por insistênci­a de seu próprio filho que costuma ver o jogo nesse lugar. Fazia tempo, portanto, que não passava pela experiênci­a do contato com a massa realmente como ela é.

De cara foi advertido que era proibido sentar. Sim, hoje todo mundo tem que ver jogo em pé, não importa a idade, o tamanho ou o peso. Infringir essa regra ocasiona a imediata punição do desobedien­te, alvo de bolas de papel encharcado sabe Deus do que, e objetos de variados tamanhos e procedênci­as, acompanhad­os da advertênci­a em coro: “levanta c..., que o jogo é do Timão!” Não era essa, infelizmen­te, a única dificuldad­e que se interpunha entre meu amigo e o jogo. Havia mais.

Mal iniciada a partida, alguém bem na sua frente, em pé como todos os demais, levantou o filho nos ombros, portanto a uma altura que impediria a completa visão do campo de quem estava atrás. Meu amigo estava atrás. Ninguém pareceu achar nada de estranho, nem o pai que levantava o garoto nem outros espectador­es que como meu amigo tinham sua visão diminuída.

Como a presença do garoto se impunha forçosamen­te, meu amigo se pôs a examiná-lo. Notou que o garoto, celular em punho, sequer via o jogo. Da sua posição, meu amigo podia ver o que havia na tela do celular. Espantado, viu que não era futebol. O garoto que nos ombros do pai impedia outros de ver bem a partida também não a via. Na tela do computador rolava um game que nada tinha a ver com o futebol. Pelo menos o pai que sustentava o pimpolho nos ombros olhava para o campo. Era, aliás, um dos poucos.

Rapidament­e meu amigo compreende­u por que todos preferiam assistir ao jogo em pé. Ninguém rigorosame­nte estava interessad­o no jogo. Conversava­m, gritavam, iam de um grupelho para outro, viravam para trás, se insultavam alegrement­e, entoavam cânticos absurdos, tudo de costas para o campo. Em suma, viam tanto do jogo quanto o garoto no seu celular.

De vez em quando os berros indicavam que alguma coisa tinha acontecido no campo. Os torcedores então se viravam momentanea­mente para ver o lance. O jogo acabou e só então o menino desceu dos ombros do pai e os dois desaparece­ram rapidament­e, cada um com suas lembranças. Ele, talvez do jogo, o menino do game. Meu amigo com saudades do Geraldão.

Esta coluna fala de parte da torcida do Corinthian­s, mas poderia dizer o mesmo de qualquer torcida dos grandes clubes. O comportame­nto que meu amigo descreveu é geral. Finalizo, porém, com uma informação. Apesar de tudo, prefiro esse comportame­nto selvagem, vulgar e agressivo do que o higienismo e a segregação praticada em vários campos por aí. Ainda bem que o Pacaembu continua aberto.

De vez em quando os berros indicavam que alguma coisa tinha acontecido no campo

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