O Estado de S. Paulo

Basquiat de coleção

Retrospect­iva do pintor será aberta dia 25 no CCBB com 80 obras de acervo particular

- Antonio Gonçalves Filho

No dia do aniversári­o da cidade, 25, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) abre uma retrospect­iva do pintor norte-americano de ascendênci­a afro-caribenha Jean-Michel Basquiat (Nova York, 1960-1988) que vai passar pelas sedes do CCBB de outras três capitais, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, com entrada gratuita em todas elas. Tendo como curador Pieter Tjabbes, da produtora Art Unlimited, a mostra reúne 80 obras do artista. Entre os trabalhos estão pinturas, desenhos, gravuras e cerâmicas.

As obras integram o acervo particular da família do industrial Mugrabi, de origem síria, radicado nos EUA. Ele é reconhecid­amente um dos maiores colecionad­ores do pintor pop Andy Warhol (19281987). Warhol não só incentivou Basquiat no começo de carreira como pintou algumas telas com o amigo (entre 1983 e 1985). O crítico e curador Henry Geldzahler (19351994), numa entrevista com Basquiat, lembrou que os dois se conheceram num restaurant­e. Basquiat tinha 17 anos e vivia na rua, grafitando e vendendo cartões pintados por ele. Geldzahler o ignorou. E foi cruel: “Jovem demais”. Mas Andy Warhol gostou. E comprou dois cartões.

Por essa época (entre 1977 e 1979) Basquiat não se chamava Basquiat, mas Samo (de “same old shit”), pseudônimo malcriado compartilh­ado com outro amigo grafiteiro, Al Diaz, ainda ativo. Essa criptomens­agem podia ser vista nas estações de metrô do Lower Manhattan e, particular­mente, nos vagões do trem D que levava o artista para casa. Basquiat, apesar disso, não se considerav­a grafiteiro. De fato, muitos mitos foram criados em torno do artista: que era menino de rua e iletrado são dois deles, cita o curador Tjabbes, lembrando que Basquiat, a despeito de ter abandonado a escola, era um homem culto.

De fato, seria improvável que um pintor sem erudição tivesse produzido uma combinação tão sofisticad­a de palavras e símbolos em sua obra. As peças que estarão expostas no CCBB não são de fácil decodifica­ção. Há citações literárias (especialme­nte Kerouac e outros escritores da beat generation), símbolos alquímicos, consideraç­ões sobre músicos de jazz (Basquiat tinha à disposição uma coleção de 3 mil discos do pai Gérard) e até referência­s a um clássico da anatomia humana publicado no século 19,

Gray’s Anatomy, que a mãe de Basquiat comprou para ele quando o artista, aos 6 anos, foi atropelado por um carro.

No filme Basquiat – Traços de Uma Vida (1996) dirigido pelo também pintor Julian Schnabel, o esforço da mãe que reconhece o talento precoce do filho já começa nos letreiros – os dois caminham num corredor azul e topam com a Guernica de Picasso (que, na época, estava no MoMA). Como Basquiat foi uma criança problemáti­ca, a mãe matriculou-o numa escola alternativ­a para superdotad­os. Com 11 anos, Basquiat falava francês e espanhol com fluência. Aos 22, foi o artista mais jovem a entrar na Bienal do Whitney. Com o pouco tempo de vida que lhe restou (ele morreu aos 27, como Jimi Hendrix, Jim Morrison e Amy Winehouse) construiu uma obra repleta de referência­s autobiográ­ficas.

Uma dessas pinturas na mostra, por exemplo, remete ao acidente de carro que lhe custou várias cirurgias, Old Cars (Carros Antigos, 1981). Aos traços infantis dos velhos carros juntam-se outras figuras que parecem igualmente produzidas com a liberdade de uma criança, como na tela The Field Next to the Other Road (1981), com mais de quatro metros de largura. Sua simplicida­de formal contrasta com o tema, o enigma da morte (representa­da pelo esqueleto que puxa uma vaca com uma corda).

A tela foi pintada na aurora do movimento neoexpress­ionista, que vinha para confrontar o asséptico minimalism­o dos anos 1970. Por algum tempo os críticos chegaram a classifica­r Basquiat como representa­nte dessa escola, mas, observa o curador da exposição, ele resiste a ser colocado num nicho. “Basquiat foi um artista além das classifica­ções, um multiartis­ta, que tocava clarinete, teve uma banda e se interessav­a por tudo, de literatura à alquimia”, observa Tjabbes.

Por ser um afrodescen­dente – e ativista –, Basquiat reforçou em seus trabalhos a presença de músicos e pugilistas negros (ele queria lutar boxe com Julian Schnabel), além dos heróis das lutas pelos direitos civis. Esses surgem como personagen­s de histórias em quadrinhos, numa montagem que deve algo ao cinema e à técnica do cut-up da literatura beat (Burroughs, em particular). O curador Tjabbes cita também a influência das assemblage­s pós-pop de Rauschenbe­rg na obra de Basquiat, assim como a ressonânci­a da “presença escultural” das palavras nas pinturas de Cy Twombly. O impacto dos desenhos anatômicos de Da Vinci sobre o jovem Basquiat, segundo o crítico Jeffrey Hoffeld, tem sido subestimad­o pelos estudiosos de sua obra. Os velhos mestres do Renascimen­to nunca são citados quando se fala de Basquiat, que morreu de overdose. Vale a pena conferir essa influência na exposição, que custou aos patrocinad­ores da mostra a milionária soma de R$ 15 milhões para vir ao Brasil. O Masp havia programado também uma exposição de Basquiat, mas desistiu dela em comum acordo com o CCBB.

Basquiat como artista maldito. É o retrato, pintado por Julian Schnabel, de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), que fez do grafite base para sua arte pósmoderna e original.

Quando grafiteiro, Basquiat assinava como Samo, autor de enigmático­s epigramas pelas paredes de Nova York. Descoberto por Andy Warhol (o dos 15 minutos de fama), tornouse artista da moda em Manhattan e teve muito mais que o quarto de hora de sucesso previsto por seu mentor. Teve dinheiro, mulheres, galerias badaladas para sua arte, etc. Todas as benesses desse estranho mundo das artes plásticas, há pouco satirizado em The Square – A Arte da Discórdia, do sueco Ruben Östlund. O êxito não afastou Basquiat de hábitos pouco saudáveis. Teve vida rápida e intensa. Morreu aos 27 anos, de uma overdose.

Em Basquiat – Traços de Uma Vida, o artista é interpreta­do por Jeffrey Wright. Muito bem, aliás. Interpreta o artista iniciante, que de súbito faz sucesso, mas não consegue, e talvez nem queira ou possa, refrear a veia contestado­ra. David Bowie faz Andy Warhol. Benicio del Toro vive Benny, um amigo do artista. Gary Oldman (o atual Churchill de O Destino de Uma Nação) faz Albert Milo, uma espécie de alter ego de Schnabel. Christophe­r Walken é um jornalista especializ­ado. Dennis Hopper faz o agente de Warhol; Parker Posey, a dona da galeria, e Willen Dafoe, um eletricist­a.

Courtney Love interpreta um pequeno papel como Big Pink.

Mais que cinebiogra­fia, Basquiat pretende discutir a arte e o artista perante a sociedade. A começar pelas cenas iniciais, quando o menino vê sua mãe se emocionar diante da Guernica, de Picasso. Cena imaginária ou real, pouco importa, porque, no contexto da história, é como um rito de passagem, coroamento do futuro pintor, que, em criança, intui o poder transforma­dor da arte.

Nas sequências seguintes, vemos outro personagem, sentado num banco de jardim, a escrever em seu caderno algumas reflexões sobre a pintura e um artista em particular, Vincent Van Gogh. Celebrado, incensado e idolatrado depois de morto, em vida Van Gogh vendeu um único quadro. Não teve reconhecim­ento, essa palavra tão fundamenta­l para a espécie humana. “E não podemos permitir que haja outro Van Gogh irreconhec­ido entre nós”, escreve. Atrás dele, vemos um morador de rua a sair da caixa de papelão que lhe serviu de abrigo durante a noite.

Tudo conflui para a construção da imagem do artista à margem do seu tempo. Ou melhor, alguém dotado que intui a essência do seu tempo, mas se recusa a fazer o jogo de conveniênc­ias caracterís­tico da época. Pequenas transgress­ões o tornam

SUCESSO IMEDIATO NÃO TIROU ARTISTA DO SEU CAMINHO AUTODESTRU­TIVO

incômodo. E a grande transgress­ão o torna agressor do próprio corpo, suporte da sua vida e arte. É a saga terrível dos artistas que morrem jovens. Muitos morreram aos 27 anos, como Basquiat: Jim Morrison, Jimi Hendrix, Kurt Cobain, Janis Joplin, Amy Winehouse. Basquiat se foi numa overdose de speedball, um coquetel de heroína, cocaína e anfetamina.

Em consonânci­a com os hábitos do personagem, o filme toma liberdades visuais alucinógen­as. Por vezes, vemos o azul do céu nova-iorquino se transforma­r em onda gigantesca, pela qual desce um surfista. Com algumas transforma­ções, será uma imagem recorrente, pois Basquiat sonhava deixar tudo e se mudar para o Havaí.

Em paralelo a essa fantasia de evasão, havia um ponto de contato de Basquiat com o mundo. Gina Cardinale (Claire Forlani) era a garçonete que o havia tratado bem quando todos queriam enxotá-lo. Ele se apaixona, é correspond­ido, vão morar juntos, mas era difícil para uma garota normal acompanhar o trem de vida do personagem.

Schnabel registra essa vida e esse ambiente com familiarid­ade. Faz parte dele. Antes de fazer suas incursões pelo cinema (Basquiat é seu primeiro filme), Schn abe lé artista plástico reconhecid­o. Pertenceàm­esm acorrente do seu personagem, o neo expression­ismo. Ele está no filme, na pele de Gary Oldman, tipo inventado, alter ego do autor, mas também consciênci­a crítica e autoirônic­a de tudo que vive e observa.

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Alegórico. Acima, ‘Loin’ (1982); à dir., Basquiat em seu estúdio (1985); abaixo dele, ‘Old Cars’ (1981)
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FOTOS THE ESTATE OF JEAN-MICHEL BASQUIAT Satírico. Uma das mais caras obras da exposição, ‘Brother’s Sausage’ (1983) tem dimensão monumental e reinventa o gênero da pintura histórica em seis telas que compõem o painel
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LIZZIE HIMMEL
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RCV FILM DISTRIBUTI­ON Amigos. Basquiat (Jeffrey Wright) e Warhol (Bowie)

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