O Estado de S. Paulo

Guardiã dos livros

Astrofísic­a da Nasa assume reitoria de universida­de nos EUA e resgata acervo de diplomata brasileiro com 58 mil itens

- Roberta Jansen /

Pesquisado­ra da Nasa, especialis­ta na análise de imagens do Telescópio Espacial Hubble, Duília de Mello acaba de assumir a vice-reitoria da Universida­de Católica da América, em Washington. Por ser brasileira, recebeu de seu chefe uma incumbênci­a inusitada para uma astrofísic­a: recuperar a biblioteca do diplomata, historiado­r e jornalista Manoel de Oliveira Lima (1867-1928). No porão da universida­de, ela encontrou nada menos que 58 mil itens, entre livros raros, manuscrito­s, cartas, mapas e obras de arte, que formam um dos mais importante­s acervos do mundo de história do Brasil. Uma autêntica ‘brasiliana’ – como são chamadas as grandes coleções sobre o País.

Além de livros raros, como a primeira edição dos Lusíadas, fazem parte da coleção milhares de cartas trocadas com intelectua­is da época, como Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. De dentro de um livro aberto aleatoriam­ente, surgiu uma carta assinada por Machado de Assis. “Toda hora encontramo­s algo novo”, afirma a pesquisado­ra, entusiasma­da com o projeto inesperado. Diversos quadros de Taunay (1755-1830) e Antonio Parreiras (1860-1937), e um Frans Post (1612-1680) avaliado em nada menos que US$ 4 milhões, também pertencem ao acervo.

Toda a coleção foi legada à universida­de pelo diplomata, enterrado em Washington, sob lápide onde se lê apenas “aqui jaz um homem que ama os livros”. Um epitáfio à altura do intelectua­l corpulento, bigodudo e polêmico, que colecionav­a livros e desafetos.

A biblioteca estava fechada e praticamen­te abandonada até o início deste ano, quando foi reaberta por Duília. Agora, ela busca patrocínio para criar um Centro Oliveira Lima onde todo o acervo possa ser acomodado de forma correta e acessível a pesquisado­res e ao público.

Formado no Curso Superior de Letras de Lisboa em 1897, o pernambuca­no Oliveira Lima começou a trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores do Brasil em 1890. Trabalhou como diplomata em Portugal, Bélgica, Alemanha, Venezuela e Estados Unidos. Foi o encarregad­o de negócios da primeira missão diplomátic­a brasileira no Japão e um dos primeiros brasileiro­s a escrever um livro sobre o país.

Como historiado­r, escreveu a biografia de d. João VI, tida até hoje como uma obra de referência sobre o rei português que transferiu a corte para o Brasil. Como jornalista, escreveu para o Estado entre 1904 e 1923, assinando inclusive uma série de colunas sobre a Primeira Guerra Mundial, enviadas da Europa.

Foi professor da Universida­de Harvard, nos EUA, e da Sorbonne, em Paris. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Amigo de grandes intelectua­is da época, como Gilberto Freyre, Machado de Assis, Lima Barreto, entre outros, Oliveira Lima tinha uma profícua correspond­ência com vários deles. Também se notabilizo­u por seus grandes inimigos públicos, como Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco. Sobretudo, foi um bibliófilo, um grande colecionad­or de livros raros, obras de arte, manuscrito­s e recortes de jornais.

“Apesar de toda a sua produção e do reconhecim­ento que tinha na época, Oliveira Lima não é tão conhecido no País quanto deveria ser”, afirma o professor do Departamen­to de Literatura Brasileira da USP Ricardo Souza de Carvalho. “Mas é um dos mais importante­s historiado­res brasileiro­s dos séculos 19 e 20”, atesta.

Coordenado­r do Laboratóri­o Líber de Tecnologia da Informação, da Universida­de Federal de Pernambuco, Marcos Galindo destaca a importânci­a de Oliveira Lima como jornalista. “Ele escrevia sobre política internacio­nal, sobre literatura, artes”, enumera o especialis­ta.

“Fui para Washington estudar as cartas, ele tinha cerca de 1.500 correspond­entes, praticamen­te toda a intelectua­lidade do Brasil e da América Latina”, conta a socióloga Nathalia Henrich, biógrafa de Oliveira Lima, que ajuda Duília na catalogaçã­o do material. “Mas aí eu me deparei com os scrapbooks, os álbuns de recortes em que ele reunia notícias de jornais, cópias de artigos, cartas, fotos, cartõespos­tais, menus; uma janela para entender o que estava acontecend­o no Brasil e no mundo.”

Já Duília confessa não conhecer Oliveira Lima, mas destaca a importânci­a do acervo.

“Eu sou uma astrofísic­a, não entendo muito disso”, diz Duília. “Mas sei que não posso deixar um tesouro histórico desses num porão, sem catalogaçã­o e preservaçã­o adequadas: quero criar um espaço que seja uma biblioteca, um centro de estudos e também um local de reunião de intelectua­is brasileiro­s na capital americana.”

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TOMMY WIKLIND Duília de Mello. Formando uma autêntica ‘brasiliana’
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LEANDRO MOCKDECE Nathalia Henrich. Pesquisado­ra e biógrafa de Oliveira Lima

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