O Estado de S. Paulo

A morte e o tempo verbal

- RUTH MANUS E-MAIL: RUTH.MANUS@ESTADAO.COM RUTH MANUS ESCREVE AOS DOMINGOS

Eu não sei se morrer é difícil. Deve ser – em alguns casos mais do que em outros. Mas de uma coisa eu sei: ficar é muito difícil. Ficar é sangrento. Aliás, eu tenho muito mais medo de ir ficando do que de ir morrendo. Disse isso outro dia a uma amiga. Deus me livre de viver até os cento e poucos anos. Pra quê? Pra ver todo mundo morrendo antes de mim? Não, não estou disposta a ganhar essa competição.

Já aprendi que perder as pessoas é duro por muitos ângulos. Não se trata apenas da ausência. São as dúvidas. Por onde é que ele anda agora? Ou melhor, será que ele anda em algum lugar agora? E ele sabe que eu estou sofrendo? Ele sofre por eu estar sofrendo? São as hipóteses. E se ele ainda estivesse aqui? E se tivesse dado tempo de ele ficar mais um pouco? E se eu tivesse tido tempo de fazer diferente?

É difícil por muitas razões. Mas existe uma dificuldad­e muito pontual – e que até costuma ser rapidament­e superada, mas que se alojou na minha memória como uma das partes mais cortantes desse processo. Trata-se da inusitada e inesquiváv­el relação entre morte e tempo verbal.

A primeira vez em que você precisa colocar uma pessoa no passado não é algo fácil de esquecer. A primeira vez que você se flagra dizendo que ele “era”, que ele “gostava”, que “dizia e “frequentav­a” e “comia” e “dançava” e “fazia” e “ria” e “detestava” e “escrevia”.

A gente até pode se preparar para certas mortes. Podemos organizar a cabeça, preparar os documentos, pensar no rumo dos imóveis, na liberação do seguro e no advogado que cuidará do inventário. As mortes anunciadas têm essa incômoda vantagem. Mas ninguém se prepara para um verbo no passado.

E não importa quantas mortes a gente já tenha encarado: não existe experiênci­a nem direito adquirido no ramo desses tempos verbais. Podemos nos habituar aos velórios, conhecer o melhor caminho para o cemitério, ter o contato do agente funerário na memória do celular, conhecer o juiz da Vara da Família e Sucessões pelo nome. Mas sempre que precisamos colocar alguém no pretérito imperfeito pela primeira vez é como se fôssemos absolutame­nte virgens naquela matéria.

A sensação é a de um abandono. Nosso para com eles, deles para conosco. Eles partiram e agora nós vamos colocá-los no passado. Eles já não são, eles eram. E não importa o quanto eles sigam sendo, no presente, dentro do nosso peito. Para o mundo, para o cartório, para a seguradora e para regência verbal, eles eram e já não são.

O Zé envernizav­a os móveis de madeira. A Má ria de absolutame­nte tudo. O Gabriel ia à igreja. O Cris cantava desde muito novo. O Paulinho velejava sob o céu azul. O Fernando dirigia televisão. O Chicão jogava handebol. O Marcito mergulhava no fundo do mar. O Urian pintava com maestria.

Dizendo hoje até pode soar bonito, como um passado consolidad­o em memória. Mas na primeira vez em que se diz, de bonito não tem nada. Nem na segunda e provavelme­nte na terceira também não. Dá vontade de não terminar a frase, porque dizer isso parece significar que o fio se rompeu em voz alta. É como consumar com palavras o conteúdo do atestado de óbito. Ninguém quer fazer isso.

Desculpem-nos por termos nos rendido às exigências mimadas dessa tal de gramática. Por nós, vocês continuari­am no presente, ainda que fora do nosso alcance. Desculpem essa nossa fraqueza de ter medo que pensem que estamos loucos se continuarm­os tratando vocês como vivos e permanente­s. Esses padrões ideais de comportame­nto são mesmo muito incômodos.

O que interessa é que seguimos sendo capazes de ouvir suas vozes. Por vezes, até sabemos o conteúdo do que seria dito. O cheiro de vocês segue persistent­e. Memórias do passado seguem sendo capazes de construir quem somos no presente. O verbo, embora continue sendo inoportuno, segue sendo apenas um verbo.

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